1.

Ela passou varios 365 dias criando para si mesma uma personalidade diferente, uma que não seja tão fraca quanto ela já é. Para isso, carteiras de cigarros, copos plásticos de café com leite, garrafas de bebidas, caixas inteiras de canetas fizeram um tapete enorme para o que ela estava determinada a traçar preguiçosamente.

Com o tempo, sua risada mudou e seu cabelo também. Não muda os seus olhos grandes e redondos, nem sua língua afiada. No entanto, em plurais maneiras ela permanece a mesma alma mole por trás de uma forte carapaça, à procura do peito que a console, do buraco que a abrigue, do sonho seja tão forte e intenso para que ela acorde.

Atrás dela, os erros e acertos foram guardados de forma segura para lembrá-la de como seguir. Quebrando o seu corpo, ela aprendeu a lutar. Quebrando o seu coração, ela aprendeu a escrever. Quebrando sua coragem, ela aprendeu a correr. Quebrando seu ego, ela aprendeu a crescer.

A capacidade que ela tem de acordar e colocar uma nova camiseta, calçar novos sapatos e viver um novo dia é propocionalmente grande a sua vontade de morrer instaneamente ao adormecer toda noite. Para equilibrar o jogo, fica na cama ainda um pouco mais torcendo para que crie um cancer, para que sua respiração acelere até parar, alguma coisa que lhe impeça de pegar o ônibus, trabalhar em cima de seus sonhos, correr pelo mundo sem dar uma ligação.

Enjaulou-se devagar dentro de sua própria cabeça. Músicas, cartas, cheiros que não quer esquecer e não tem ânimo para abraçá-los. Pendurou na sua casa todas as suas vitórias e medos para lembrar que uma coisa só vem com a outra.

Finge vícios que não quer ter. Finge dores que não quer sentir. Perto disso, os problemas da humanidade, o preconceito, a pobreza e a diferença social ganham proporções tão pífias que tornam-se bilocas para serem jogadas numa rua qualquer sem asfalto.

Escreve para não ter que gritar e grita para não ter que explicar. O grito choca e faz com que se preocupe o que fazer depois do grito e não com o que ele realmente quis dizer. Então grita com as paredes, joga pragas nos que atropelam seu caminho, xinga os que não podem ouvir, mas sussurra suas angústia dentro de sua boca em forma de músicas.

Persegue no seu destalento de fazer as coisas firmemente. Destroi em dias, em palavras e em simples olhares o que custou vidas e corações para ser construido.

Prefere o não-perdão à opção de esquecer por completo tudo o que foi feito. Já ouvi falar que ela tem essa mania de transformar tudo o que toca em bosta e de aprisionar dentro de si grande parte de todos os que ela resolve se aproximar.

Criou e alimentou o medo de chuva para servir de desculpa para que saia e se molhe na rua. Criou o medo de ir pra rua para se manter seca todos os dias, pingando suor no próprio travesseiro, amargando o gosto de sangue na boca.

Amá-la é algo lindo, puro, eterno e também assinar o próprio atestado de óbito. "Morto por falta de amor".

Elle, R.


Nosso amor sempre foi um blues, daqueles que se cantam sentados batendo as solas dos pés no chão e de olhos fechados. Quantas poesias criamos nós durante nossa infância, quantas dores nós acumulamos em nossa adolescência e quanto medo sustentamos na nossa velhice? Éramos nós tão livres, tão leves, tão grandes e tão fortes, mas todos os nossos tesouros escorreram entre os dedos de nossas mãos no momento em que elas já não se entrelaçavam.

E o asfalto nunca foi tão limpo e nem a chuva lembra o nosso nome. As estrelas já não brilham, meu amor, não mais. Fizemos tanta força para que nosso pequeno e inocente querer se desfizesse sempre que a vida nos provava por a+b que nossos caminhos não deveriam brincar juntos.

Mas quando abraço você, assim quando ninguém pode me ver ou ouvir, nos poucos segundos eu tenho a sensação que voltei para o meu lar, para continuar aquela conversa que nunca terminamos. É estranho, que temos a maldição de morrer quando nos aproximamos.

Um dia a mais e meus olhos choram hidrantes de tristeza. Um ano a menos, e meu corpo se esmorece e estremece quando penso no éramos, no que fomos. E finjo que não percebo que as pessoas falam de você e finjo não sentir saudade quando faço piadas das suas antigas confusões.

Eu só queria te contar tantas coisas, tantos mundos de palavras que existem em mim. Eu só queria te contar, qualquer bobagem que dê o tempo certo para que você diga que não tem explicação.

Mas nosso amor sempre foi um blues, meu amor. E como ela dizia em voz de choro, quando uma mulher encontra o blues, ela pega o trem e vai embora, quando um homem conhece o blues, ele cai sentado e chora.

Me dá um medo.
Que medo.

be strong

você já esteve preso dentro de si mesmo?
já fizeram você achar que o único lugar seguro é inside your head?
você já tentou tocar sua alma e viu que ela virou areia?
quando você grita só seus ouvidos te escutam
e chorar silenciosamente quando todos da casa estão dormindo se torna um ritual
já acordou a sete palmos da superfície da vida que você construiu pra você?
seus filhos morreram dentro do seu útero antes mesmo de serem feitos
você sente raiva descontroladamente, mas a única pessoa que tem coragem de ferir é a si mesmo
no one can get it.
dentro de si há uma caça por um remédio ou qualquer coisa que faça parar. ou que pare, ou que te exploda no final
primeiro, ela invade.
invade sem pé na porta, mas entra em mim pelos poros da minha pele. meu corpo começa, lentamente, a adormecer em toda a sua leveza. ela muda minhas cores e torna tudo tão claro e tão transparente.
não há mundo do lado de fora da janela, quando ela me acompanha num cigarro. mais que um beijo, um abraço e um colo. como caranguejo que se esconde na toca, eu me acomodo em suas pernas para lembrar dos sonhos que ainda não tive.
e mergulho. sinto a água morna e salgada encher meus pulmões, assim, educadamente. correr não é uma alternativa a ser marcada. minhas pernas são como areia molhada e se desfazem quando o vento bate.
eu estive perdida dentro de mim mesma. inúmeros corredores não me levaram a lugar nenhum. eu vi sexo, bebidas, drogas, crianças. contudo, em maior parte de mim mesma eu não vi nada, como quando se olha para um galpão antigo cheio de bugigangas e ainda assim não se vê nada.
dentro de mim, tem muitas pessoas,, qalgumas delas são minhas, outras me possuem, outras eu já tive e não consigo me desfazer. dentro de mim tem muitas lágrimas e muitas risadas e muita lama.
eu vi meus talentos guardados em caixas de madeira e vi meus medos pendurados em paredes. eu vi a mentira e a verdade, mas ainda não sei quem me tocou pela última vez.
as coisas parecem tão simples de fora, mas entre as inúmeras paredes que carrego em mim i mundo já não é o mesmo. um pouco de alucinações e uma criatividade lúdica. inumeras personalidades penduradas em cabides em um armário que daria a volta no meu dedo. espelhos para todos os lados e gritos guardados em potes, como se fossem fetos conservados em formol.
e eu achei minha voz. várias páginas empoeiradas e já amarelas, muito lixo e móveis sobrepostos eu pude ver ouvir minha voz. ainda que fraca, trêmula e cansada, ela pulsava.
quem nunca sentiu-se acordar imerso em água de forma que o peito tenha tamanha pressão que o ar parece romper as paredes do pulmão? dói. e ficar horas na cama depois que o despertador do celular toca umas quatro ou cinco vezes, na esperança de que uma hora não seja necessário abrir os olhos depois de dormir. torcer e chegar a deixar o ateísmo de lado para pedir que uma doença fatal caia sobre suas pálpebras, para que as amorteça até que se colem na eternidade da morte. aumentar o uso de seus vícios corriqueiros no desejo de que esses te façam esquecer da falta de ar, como era no início. respirar tão lentamente que seja possível ouvir músicas entre uma inspiração e outra.

Todos estavam sentados na sala conversando amenidades e vestidos de cáqui e branco. Eles sorriam mostrando os dentes e bebiam doses cavalares de conhaque, café e whisky. Contavam as mesmas piadas, simulavam as mesmas brigas, flertavam com as mesmas meninas, traiam as mesmas garotas, comiam os mesmos caras, choravam as mesmas tristezas, ouviam e cantavam as mesmas músicas.

Um relógio na parede indicava a mesma hora de três anos atrás. A poeira já havia se deitado com todos os móveis e teias de aranha substituíam as cortinas de linho branco que haviam nas poucas janelas. O chão de madeira rangia e sussurrava histórias e lendas antigas, em que crianças comiam os sonhos de adultos e de mulheres que pulavam dos braços do marido para uma vida mais quente.

Inquestionáveis, eles se mantinham batendo e debatendo nos outros, enquanto seus traseiros se afundavam no couro de suas poltronas. Os novos, assim como na bíblia, acostumavam-se em comer das migalhas que caiam da mesa. Os velhos mastigavam de boca cheia de deixavam de comer ao ver uma carne nova chegar.

Falavam deles mesmos aos gritos e berros. Choramingavam nos ouvidos dos outros os defeitos alheiros e riam de tudo. Riam dos cabelos, dentes, pernas, pintos e bocetas espalhados pela sala. Em tom de deboche, convidavam os demais e expulsavam os outros.

Mas tudo silenciou no momento em que o relógio começou a tiquetaquear, no ritmo de valsa. Eles se entreolharam e continuaram a falar, tentando conversar num tom tão alto que abafasse o barulho mortal dos ponteiros andando em círculos. Batiam os copos na mesa, esfregavam os pés no chão por baixo da mesa, riam desesperadamente.

Os olhos de todos, arregalados e raivosos, estavam voltados para o relógio, que começara então a contar os minutos para o final daquela farsa. Desesperados começaram a revirar todo o local em busca de si mesmos, em busca do poderia ter acionado o tempo que determinou o seu fim.

Sacudiram suas roupas e perceberam que estavam magros e esqueléticos, pois o que comiam só enchia o ego  e suas carnes estavam quase mortas. Sacaram que esqueceram de suas almas em algum lugar. Reviraram suas cadeiras e mesas, encontrando pedaços de felicidade, verdade e paz pelo chão, itens que um dia foram deles e com o passar da mesmisse, se desprenderam deles e caíram no chão como casca de árvore velha. Aborto de idéias estavam em todos os cantos.

Reviraram os bares e encontraram em cada garrafa vazia o desespero de conhecer a vida. Tentaram correr das batidas e os seus pés estavam amarrados com bolas de ferro banhadas em mentiras. Tentaram pedir socorro, mas suas bocas se acostumaram no maldizer diário e começaram a discutir. Por medo, choravam.

Quando um deles levanta um corpo nos braços, já frio e quase azul. Um vestido de linho fino cobria seu corpo, tornou-se vinho pelo sangue que escorria de sua barriga e pernas. De uma poça de sangue, levantaram um corpo nos braços. Um corpo magro e pesado. Olhos pintados de preto e lábios pálidos.

Pequeno pedaço de carne e osso, que segurava em sua mão esquerda a corda que disparara o maldito relógio. Eles estavam raivosos e com olhar faminto. Para resolver o problema da magreza, comeriam o corpo ali mesmo, pela fome e pela vingança alcançada.

a minha tristeza tem cabelos cacheados com fios que se alternam em preto e cor de ouro velho. ela tem um sorriso largo e costuma ir à igreja antes de acordar com beijos. com vestidos estampados, chama atenção quando ao andar, o tecido cola em sua pele como beijo de adolescente.
ela desafina ao cantar enquanto lava a louça do almoço, em pose de flamingo. quando fica assim, posso ver por entre suas pernas, pela luz que sai da janela e ilumina o chão da cozinha. a minha tristeza é amada pelos meus amores e eles não conseguem se desvincilhar dela, daqueles olhinhos redondos que no sol tem cores diferentes.
festeira, ela me acompanha em todos os lugares. ela está comigo quando entro no ônibus e todos estão de terno e aparece sempre que eu vejo aquele sorriso.
a minha tristeza é uma coisa linda de se ver e seus amores são verdadeiros contos regados de por-do-sol, saudade e camas grandes.
a minha tristeza é mais dele que minha.
é dele.

paleta

Eunice tinha a pele clara e olhos negros. Um contraste que só era nítido quando pintava aquelas duas bolas da cor de fundo de poço. Eunice tinha pernas longas e pés finos, mas só era possível perceber quando o seu vestido encontrava com o vento e os dois se amassavam em um romance de chocar os homens de família. Aquela garota não tinha muito com a vida, não tinha muitas pessoas para dar satisfações, não tinha muitas histórias boas de se contar.

Todos os dias, Eunice mantinha uma rotina desorganizada. A única certeza era de que algo extraordinário iria acontecer, e isso podia ser ela dançando embaixo dos pingos de chuva ou quando ela entrava no trem cantando em tons altos. Era de espantar as moças requintadas das famílias nobres da cidade.

Seus cabelos tinham uma textura que só os deuses poderiam descrever com perfeição, assim como o desenho que contornava sua cintura fina, quase de cumbuca. Um sotaque e uma dificuldade em pronunciar palavras grandes. Ela expressava-se mais com trechos de poetas - que demorara anos para compreender, decorar e aplica-los em diálogos. Parecia confundir os sábios da sociedade.

Todo o mundo girava da dobrinha do braço de Eunice, que tinha a alma livre em um corpo acorrentado ao alto mastro dos bons padrões. Levada, ela dançava enquanto andava. Seus quadris pareciam saber o nome de todos os homens casados da região. Tranquila e pintada em aquarela, Eunice sorria para dá bom dia e dizia seu nome com bochechas rosadas.

A morena era como quando se pinta fora do traço. A diferença causava curiosidade e ela era como flor que abre uma pétala de cada vez no calor. Olhos de pôr-do-sol sem nenhuma culpa ou pesar.

Várias primaveras foram se passando. Vários verões morreram. Algo mudou na vida daquela jovem. Sem explicação, sua vida começou a apagar sua felicidade. Eunice guardou na pele todos as marcas desses finais. Já não aparecia com seus vestidos e nem dançava sua música. No meio da multidão atrasada não era mais possível encontra-la com facilidade. Olha o relógio, pede um café em copinhos de plástico e corre.

Nem azul: índigo era a cor de sua boca quando dava 'olá' para o padeiro de manhã. As curvas agora estavam desenhadas à régua e borracha. Acordar, sentar-se na cama, ajeitar os cabelos e mentalizar coisas boas para ter coragem para enfrentar o mundo. Isso era a sua nova rotina. Todos os dias nos bares, segurando terço e rezando para conseguir levantar-se no final da garrafa e chegar em casa.

Agora, quando andava na rua, a decadência lhe era nítida. Como cão cansado de correr atrás dos carros, ela seguia com seu corpo encharcado de água ácida. Os olhos negros escorriam nas bochechas e o corpo violado já não era violão. Antes o vento, agora a água tinha uma briga ferrenha com suas saias e as colava nas coxas claras de Eunice.

Já não sabia muito como falar, nem o álcool deixou que seus poetas falassem por ela. O silêncio amargo com cheiro de hálito matinal era a sua característica. A observação deu lugar a interação e o mundo a consumiu. Passar os dias punindo-se para agradar os que sempre, e sempre, a condenaram como uma mulher má.

Os amigos a acham genial e apreciam como a tristeza lhe cai bem. É um quadro tão lindo de se vê. Na rua, com seus vestidos pretos, ela deitava no chão, chutava as caixas e todos aplaudiam. Um palhaço no palco não seria melhor intérprete de tanta desgraça.

Mas em casa, após tirar as máscaras, deixava seu corpo cair sobre a cama e sempre se esquecia como se cobria. Custava umas duas horas para dormir e sempre, sempre, pedia antes de cair no sono, um abraço.
Fico ouvindo os baldes de água se enchendo enquanto ela dedilha os dedinhos pequenos no violão. A felicidade nunca foi tão presente em nosso pequeno lar e a vida parece andar lentamente. As janelas de vidro convidam o grande Sol para nossa cozinha e eu vejo o rosto dela agora um pouco mais amarelado.
Eu não poderia deixá-la de amar nem por um segundo. Eu não conseguiria vivar sem minha pequena.
Deixei sinais espalhados pela nossa casa para não esquecer que um dia a tive nos braços de forma única que fez meu coração pulsar um novo sangue.
Os baldes transbordam. Minha mente se enche de água quando meu coração lembra daqueles pequenos pés imundos no nosso lençól, na nossa cama. O mundo pareceu tão injusto com a vida, que ela descontou em nosso amor para se vingar de tamanha injustiça.
Eu olho ela dedilhar no violão com suas mãosinhas tão pequenas e magras. Ela nem sabe que a olho, nem mesmo deve lembrar meu nme ou o que nós vivemos. Hoje está entre outras pernas e seu coração em outras mãos.
Eu, hoje, procuro a música certa para fazer as palavras saírem, enquanto minhas lágrimas nem pestanejam antes de cair. Basta lembra do nosso pequeno precioso estranho amor que todas gotas dançam em minhas bochechas magras.
Eu lembro de comprar pão, do sofá, dos apertos. Lembro das cartas que trocamos e que não (NÃO!) consigo me desfazer. Esse pequeno peixinho, esse meu inferno astral está presente em todos os meus seres e nâo há veneno que mate essa dádiva.
Minha vida desandou no dia que resolvi parar de falar dela. Aquela lenga-lenga de sentar no bar, acender o cigarro e danar a falar daquela mulher quase me endoidece. Mas no dia que parei de falar dela, amigo, o mundo parou de rodar. Nem crescia flores, nem chovia, nem sol fazia. O dia só iniciava por que o maldito relógio cutucava a bunda do Sol pra ele levantar, pois até ele sentiu falta dela.
Meu cigarro parecia não queimar e não foi por tentativa. Passava no Pão de Açúcar e compra a caixinha inteira. Durava dois ou três dias. Eu acendia, mas a porra não queimava. E por falar em porra, ela também sumiu, no dia que jurei não falar nela.
Eu parecia cego. Todo dia eu ia pegar ônibus, com o cigarro no dedo - na boca -, mas não via nada. A rua sempre tava vazia e o ônibus também. O cobrador nem dava bom dia e o motorista não apanhava ninguém. Fiz a barba e cortei os cabelos. Meu rosto parecia lixa e minha boca era como o chão do sertão. Saía do trabalho, com a cara de anteontem, passava no bar e nada me embrigava. Sentei várias vezes no meio para conversar com os pedintes que passavam, mas nem os invisíveis queriam papo com esse desgraçado.
E eu endoideci. Fiquei várias vezes conversei falando comigo mesmo enquanto fritava meus ovos. Jogava a farinha na panela e permanecia num diálogo de doido. Devo ter envelhecido cinquenta anos nesses dias que deixei de falar com ela. Mas que diabo aquela mulher tinha pra me deixar assim?!
Pra dormir, eu tinha que tomar umas pílulas e uns drops. Eu só queria montar naquela cinturinha mais uma vez e falar sacanagem no pé do ouvido e, se ela deixasse, chamá-la de safada. Aí eu resolvia não falar sobre a morena, ficar na minha e não voltar pra rotina de escrever sobre ela. Quando dava por mim, o despertador gritava igual minha mãe fazia pra eu ir pra escola. Só faltava falar: "'Bora estudar, menino. Você tem que ser alguém na vida pra sua mulher não ficar esquentando a barriga no fogão pelo resto da vida. Vambora!". Mas o danado nem se dava ao trabalho e só cantava aquela musiquinha que tem no filme do Stalone.
Cacete! Eu já tinha que trabalhar mais um dia e era dia de preto. O Sol já cutucava minha bunda e eu tinha que levantar.
Jurei várias vezes que ouvi ela falando comigo e por muitas vezes me vi de pau duro no trabalho pensando no dia que a peguei no capô do carro. Ah... Que veneno tinha aquela moleca. Quando eu via, o povo me olhava com cara de 'virgem-maria' e eu tinha que procurar outra coisa pra fazer. Apesar de sacar que era só escrever num papelzinho que eu queria ficar com ela ou falar do seu corpinho eu me negava e carregava mais um caminhão pra matar os pensamentos do mal.
É rapaz... A vida desandou quando me neguei aos caprichos dessa garota, mas ela não descanso. Eu cheguei no ponto de suar e até tentei com outras minas aqui da rua, mas sabe como é: era aquele cheirinho de banho tomado com Palmovile que me fazia feliz. Boceta e Palmovile.
Aí não deu em outra. Já tava pra subir as paredes quando não resisti e escrevi sobre ela. Cravei num pedacinho de sacola que usei pra levar minha marmita o que sentia na hora. Escrevi pouca coisa, por que a cabeça já tava cheia demais e mal conseguia unir as ideias. "Sinto saudade do teu umbigo molhado com meu suor e de tua poesia cruel. Vou te levar pra dançar comigo no meu cafofo até raiar dia".
Aí, meu mundo voltou a rodar normal, mas como esperado, ela largou dos meus pensamentos. Mulher ingrata! Só me deixa assim pelo prazer de me deixar doido e mostrar que sem ela, a vida desanda. Desanda mesmo.

MAD



Ruby e Cassandra.
O último encontro.

Estava tudo branco. Um relógio na parede indicava que o tempo tinha passado de forma confusa. Os TIC TAC’s estavam mudos e assim estavam para não acordar quem há muito dormia lá. Havia uma janela aberta. Uma cortina leve de musselina branca voava dando forma ao vento. Na mesinha do canto, uma vela acesa e um relicário vermelho e amarelo. Perto da cabeceira da cama, alguns livros, alguns cadernos, alguns vinis e um cavalo marrom feito de plástico e ferro, de uns 18 cm de altura. Havia flores por todos os lados. Não tinha sequer um pedacinho de chão vazio de flores, a não ser o caminho que levava da cama para a saída. A porta era branca e tinha uma fechadura com nomes em japonês. Ao lado da porta, um vidro foi colocado para que quem quisesse olhar para fora, visse então o que o que havia lá fora. E para que quem quisesse olhar para dentro, visse o que estava lá dentro. Dentro ou fora, havia uma porção de perguntas.
O quarto já estava com um cheiro forte das flores que lá estavam, misturado com o cheiro de vela que cobria o relicário de parafina. E na cama, coberta por lençóis verdes de algodão, estava Pilar. Ela tinha lindos cabelos cacheados, que misturavam o vermelho e o preto. Seus lábios sempre eram pintados de vermelhos e nos seus olhos tinha o seu número favorito. Na sua mão, anéis com lindas pedras não-preciosas. No seu colo um colar sem algum pingente, mas mesmo assim, combinava muito bem com ela. Naquele dia, foi marcado por ela o último encontro de quem nunca tinha se encontrado: Ruby e Cassandra.
Entra primeiro Ruby. Com ela, entra o cheiro forte do cigarro que ela fumava. Ruby não olha para Pilar que a observa religiosamente. Ruby apenas segue até a janela e observa religiosamente o que acontece lá fora. Ela tira a carteira de cigarros do bolso da jaqueta e coloca um na boca. Não o ascende. Só coloca na boca e o passa entre os dedos. Ruby parecia estar cansada e parecia não dormir bem por dias, mas estava muito decidida. Suas sobrancelhas estavam muito bem feitas e flexionavam sobre seus olhos, dando-lhe uma expressão de preocupação. Ela passava o cigarro por entre os dedos e olhava para fora com a boca entreaberta. Pilar estava realmente facinada por aquela cena. Era divina, por assim dizer. Ruby então encosta seu lado direito nos umbrais da janela. A luz deixou seu rosto finalmente aparecer por completo. Era linda por sinal. Seu cabelo vermelho parecia estar em chamas e ao mesmo tempo, lembrava um morango bem maduro, ou melhor, um campo de morangos maduros. Sua boca estava pálida e seu rosto quase sem nenhuma expressão. Estava ainda, um pouco mais magra desde a sua primeira visita. Mas continuou com seu blue jeans. Estava com uma bota sem cadarços e com uma fivela só. Era linda. Realmente exótica e esplendida. Mas estava muito triste, muito pensativa. Seu normal também não era uma pessoa efusiva e transparente. Mas aquele dia ela estava muito mal. Estava com um olhar distante e confuso. Até que mostrando-se surpresa ela olha pela a janela e seus lábios se desdobram em um sorriso bem discreto. Ela sussurou tão alto que pude ouvir:
- Aí está ele.
Então comecei a ouvir o motor de seu velho Impala marrom. Ela realmente amava aquele carro. Ela debruçou-se sobre a janela e se inclinou sem tirar as mãos dos bolsos para ver seu carro. Ela voltou para o quarto e se escondeu na sombra que a parede fazia. Ela sorria em silêncio com os olhos fechados. Mas ela estava com uma nova cor. Pilar a observava calada, mas acompanhava seu sorriso. O Relógio voltou a tictactar e em pouco tempo, entra ofegante no quarto Cassandra.
Cassandra estava com as bochechas rosadas e sua respiração estava acelerada. Parecia que tinha vindo correndo de quilômetros. Ela observou o quarto e perguntou como se fosse uma criança:
- Onde posso me sentar?
Ela estava tão apressada que não percebeu a presença de Ruby no mesmo lugar. Cassandra estava com seus cabelos no volume certo. Parecia um pouco embriagada, admito, mas ainda assim estava linda. Usava uma regata preta, com uma grande rosa verde na frente. Seus tênis estavam imundos. Ela trocou a calça jeans por uma bermuda que desfiava onde ela passou a tesoura. Suas mãos estavam com tintas de todas as cores, em especial as pontas dos dedos. Seu batom vermelho deu lugar à um cor-de-boca, mas apesar de estar com lápis-de-olho. Foi uma linda cena. Ela a viu. E ficaram se olhando por um bom tempo. Quando digo um bom tempo, me refiro há horas. Horas dentro de um quarto em silêncio. Só se ouvia o som dos aparelhos que fazia Pilar respirar. Pi. Pi. Pi. Pi. Pi. Pi. Pi. Pi. Cassandra se sentou ao lado do relicário. As velas não pareciam acabar nunca. Nunca! E Ruby estava próxima a janela, com seu cigarro apagado. Os olhares silenciosos pareciam uma conversa entre as duas. Era lindo e triste ao mesmo tempo. Pilar só as observava, e elas pareciam não vê-la.
Ruby então pronunciou baixinho em tom grave:
- Preciso ascender meu cigarro.
Foi tão grave que foi possível ouvir a rouquidão da sua voz da forma mais intensa possível. Aquele ruído varreu o lugar. Não era uma rouquidão como de Janis ou de Cássia. Era algo sensual e sutil. Cassandra então disse:
- Eu tenho uma vela.
Aquilo foi um convite, mas ainda não se sabe para o quê.
- Eu posso esperar pra fumar em outro lugar.
- Eu posso ascender pra você agora.
- Muito obrigada. Eu espero.
Novamente, o único que conversava lá era o silêncio. Isso durou por alguns segundos, até que Ruby tentou ascender o cigarro com o isqueiro que carregava. Inútil. O gás tinha secado.
- Eu sequei o isqueiro antes de você pega-lo,
- Eu ainda posso esperar.
- Fumar é bom.
- Deve ser.
- Gosto do gosto que ele deixa na boca.
- Deve gostar.
- Devo sim. É o que mais gosto.
 Então ela tirou de seu tênis um único cigarro que carregava. Um pouco amassado, ele tinha a piteira com um botão de liga-desliga impresso em “navy”. Colocando-o na vela, ascedeu o fogo.
- Fumar é realmente bom.
- ...
- Por que não vem ascender?
- Eu posso esperar.
- Joga o cigarro, eu ascendo pra você.
- Eu posso esperar.
- Por que você se nega ao meu fogo?
- Prefiro o isqueiro.
- Você deveria ascender logo. O isqueiro secou e provavelmente, dentro desse lugar você não vai achar outro. Ascenda.
- Não.
- Todos precisam de fogo, sabia?- Disse Cassandra da forma mais infantil que conseguia.
-Eu sei. Mas ainda assim, posso esperar por um isqueiro.
- Por que?
- O fogo tem dois lados senhorita.
- Ainda assim vale a pena ascender aqui. Cigarro é muito bom...
Então passou um senhor na porta do quarto, e Ruby disse:
-Hey you! Tem um isqueiro aí?
- Isqueiro... Tenho sim. – Disse o senhor com um ar meio desconfiado.
-Joga aí!
Ele jogou. Ela ascendeu. Ela jogou. Ele pegou. Ela agradeceu com um sorriso. Cassandra então se levantando para ir embora, bateu no relicário e acabou derrubando a vela, que queimou sua mão. Ruby a olha como quem dizia: “Esse é o outro lado do fogo”. Cassandra olhava para mão e sorria sem parar. Sem perceber, as flores do chão estavam em chamas. E o cheiro de rosas, narcisos e lírios queimados estava por todos os lugares. A fumaça era negra e cobria os olhos de qualquer um. O vidro segurava a fumaça la dentro. Ruby continuava a fumar seu cigarro com as mãos nos bolsos. Cassandra ainda sorria pela queimadura, enquanto seus olhos estavam molhados e vermelhos. Ruby deixa o quarto levando com ela parte daquela fumaça em suas roupas. Ela sai pela direita do corredor. Cassandra não sorria mais. As lágrimas enchiam suas bochechas coradas. Saindo do quarto, ela joga as chaves do Impala nos pés de Ruby e corre na direção contrária.
Pilar então se pergunta: “Por que ela chorou pela vela? Por que ela saiu correndo? Por que elas fumavam no hospital? Por que eu estou deitada aqui?”... Pilar fecha os olhos e os abre lentamente. Olha ao seu redor e ver que estava no seu quarto todo o tempo. Estava o tempo todo sonhando com tudo isso. Estava fantasiando todas as milhares de palavras sobre essas duas garotas. Estava ela o tempo todo olhando-se no espelho, vendo que era ela a Ruby. Era ela a Cassandra. Ela apenas ela. Era apenas Elas. Tudo em sua volta, foi uma mera ilusão.
E nessa história quem sou eu?




em terceira pessoa

Ela tem cabelos médios, no tom castanho médio e olhos grandes. Vestida de jeans e camiseta, ela é leve e dá pra saber só de vê-lá sorrir. Parece que toda a sua juventude de passou em apenas um ano. Ela já está na terceira marcha e ainda parece uma menina.
Seu corpo tem a suavidade das pedrinhas de rio, mas as firmeza dos Andes. Quente, ela incendeia lençóis e corações deixando marcas.
Fica bem de vermelho e branco. Acorda com cara de sol até nos dias de chuva. Tem o dom da escrita e as crianças a vê como uma princesa.
Lábios quase finos, deixa no beijo a vontade insaciada, uma sede quase insolúvel: vicia.
Peito rosado e médio, cintura fina e coxas que viram poesia na cama, viram cartas.  Parece teimosa, parece calma. Ama com decência e fode com a força de cachoeiras. Jorra o nome dele. Uma erupção em água, nos lençóis.
Ela é do tipo que deita e vira foto. Que sorrir e vira quadro. Que chora e vira crônicas.
Ela está em todos os lugares. Sonhos, espelhos, delicadas mensagens espalhadas em um corpo moreno. Ela dá vontade de comer.
Ela é a terceira pessoa de nós dois. Ela é meu medo. Ela é sua esperança.

Dois

Ela estava em todos os lugares. Subliminarmente inserida nas conversas de boteco, nos filmes favoritos, nas cartas escritas. O sentimento de ser mais uma alternativa a ser riscada na cartilha rodeava meus cigarros e pouco a pouco me vi chegando a beira da loucura, que por sinal era muito atraente.
Cheguei a vê-la dentro dos espelhos, em recados de canetas azuis, falando sobre um oásis que eu imaginei ser para nós. Curiosamente, foi difícil caminhar sem tremer por algumas horas e continuar respirando até hoje.
Ela estava em todos os lugares. Eu ainda sentia seu cheiro quando abria a porta do armário, ouvia sua voz nos copos de cachaça, a via sempre como peça ideal. Seu rosto moldava o meu, a ponto de meus dentes tomarem a forma dos dela e meus olhos se tornarem os dela. Eu a sentia escorrer em minhas costas quando lavava meus cabelos.
Toda sua leveza e seus tons verdes me matavam por dentro. A imagem do meu fracasso surgia quando ela passava na multidão com seus adornos redondos e vermelhos. Cores. É a isso que ela me remete. E usando me vejo, em tons de sépia, me despedaço por dentro, pois toda cor que tento colocar em mim, vira marrom.
No mais, eu vejo nela os quadris, os beijos, as cartas e fotos, o que por sinal me lembra a asma.
Fico no empasse de ser dois. Fico nesse impasse de ser duas. Fico na dúvida se há um dois.