soube desde o instante que seus olhos se encontraram com os dele que seu coração mudaria de órbita.
de repente, a língua se dividiu em duas para que pudessem conversar e se reconhecerem depois de milênios de amor.
dessa vez, a paz não exclui o medo e, juntos, alimentam a mais pura forma de paixão.
assim, se tornam sagradas as pernas que abraçam o corpo, o café pela manhã, o último cigarro da noite.
os dois se encarregam de queimar toda ponta de incerteza quando cruzam os olhos.
dois olhos negros.

Sobre Lúcia

Ela tinha olhos de fita, que registravam e gravavam os meus mais singelos gestos de agonia. Terna, esbanjava a sua suavidade de pena sobre minha pele de pedra. Na tentativa de acalentar o turbilhão de dores que meio seio teimava em criar, abraçava-me e me levava a um futuro dado a nós duas como incerto, improvável, impossível e, no momento, tão real.

Eu tinha todos os medos do mundo: medo deles, medo dos que me rodeiam, medo de mim. As dores se misturaram naquelas alegrias contadas no fundo da casa e, de repente, a sensação de cair - novamente - se fez verdadeira. Pensava comigo que não era possível que, ainda que em outra estação, o destino tivesse me colocado novamente para cair, sem chão. Na minha mente, todas as quedas eram sentidas por horas a fio. Nem mesmo meu corpo físico poderia suportar todas pancadas em um momento só, todas as dores de uma só vez, todas as feridas expostas ao mesmo tempo. As costelas doíam como ao bater nos portões, os dentes travavam no mesmo bruxismo de quando meu corpo foi usado como consolo e eu segurei o grito, as mãos cerradas apertava os dedos tal como eu fazia para me proteger do velho cigano e a solidão me acometeu lembro-me do recente e constante abandono.

Mas ela, com mãos de edredon velho em dias longos, acalentou-me em seu peito, tranquilizou-me em seu seio. E eu, em detrimento de meu orgulho, deixei-me levar pela doce lembrança de um futuro que jamais tivemos.

Aquela

Aquela vontade de pichar "morra" não se esvaiu. Nem o plano de salvar os gatos e tacar fogo em tudo.

Ainda grita em mim a ânsia de destruição. Não me encha a paciência, nem tente me cortejar com poesia.

Vá a merda!

pra viagem, por favor.

giantflyingturd.deviantart.com
meio diazepan, meio captopril e duas gotinhas de dipirona me fazem pensar que, talvez, a alegria em beber, dançar, foder e beijar a noite inteira é apenas por achar que de alguma forma eu me aproximo de você.

penso então que os prazeres e gozos dessas últimas semanas se deram porque procuro em todas as pessoas um pedacinho de você, pra curar a minha vontade. a voz, a barba por fazer, os olhos de menino, a boca vermelha ou o corpo magro. acabei dando sorte de encontrar até o nome, mas o azar de continuar na maldita situação de não-vai-nem-racha.

pergunto pra mim mesma até que ponto isso pode ser saudável e se eu realmente quero saber o que se passa na sua cabeça. para mim é fácil quando bebo umas coisinhas por aí, tomo os remédios que carrego na bolsa e toda coragem do mundo me veste e fico pronta pra usar os apps do celular pra te ligar. só é difícil quando percebo que nem todas as coisas que uso me dão a vontade de chegar e falar "e aí, tá afim?". então fico me mantendo embriagada para não pensar nisso, não planejar nada, não maquinar o mal, não suspirar seu nome e nem pedir abrigo (mais).

ando comprando carteiras de cigarro em par e elas duram horas. ando experimentando outras misturas e elas nada duram. eu te procuro em todas as garrafas, mas acabo sempre com copos meio vazios, meias ligações, meios encontros.

eu achei que arctic monkeys tocava para a minha despedida, mas acho agora que eles tocam para eu e você.

mulher de Peru



a vontade que a luz acabe, que o tempo pare e que o medo seja a última dose na garrafa não passa.
eu corro os dias tentando não pensar no que poderíamos ou não ser, nos breves minutos e que nossas agendas se cruzaram. fumo cigarro, mordo a ponta da caneta, compro chicletes e balinhas, mudo a alimentação e vejo meus dentes tornos. os lábios parecem ter formiguinhas vermelhas só de pensar em morder sua boca. viro cachoeira quando penso e me sinto criança quando fala comigo. 

despedida



descobrimos que o amor não é tempero suficiente para rotina.
também percebemos que o tempo faz esquecer e não curar.
aprendemos que para ter alguém ao lado é preciso ceder e lutar, diariamente.
vislumbramos, então, que não somos tão interessados nisso.
culpamos o próprio espelho e o ego alheio do final que chegou atrasado.
sorrimos sós muito mais do que os tediosos finais de semana no sofá.
redescobrimos gostos, sabores, perfumes e sons que a mesmice já tinha nos tomado.
entendemos que a saudade só existe com a ausência, mas que isso não dá corda para tudo.
ouvimos um ao outro em poucos dias mais do que nos prestamos a ouvir durante dias sem fim.
sentimos um falso amor mais forte e imbatível do que o verdadeiro que juramos um ao outro.
furamos o respeito, pulamos o orgulho, caímos em desespero, subimos em festa, ferimos um ao outro com ponta de agulhas.
choramos um pouco, descobrimos novas pessoas em nós, nos odiamos todo dia um pouco menos.
desatamos o nós, para ser você/eu.

adeus.

torço para que teus longos cílios me cubram nas noites frias dessa Brasília
me converto e rezo para que tua barba me aqueça quando o gelo entrar pela porta que ficou aberta
suplico que o peso que ainda resta e segura meus pés passe para que meu corpo seja leve e vivo nas tuas mãos
quero que me devore como quem come pêra suculenta depois da última ponta e quero que me toque como se eu fosse a velha guitarra no canto da parede do seu quarto
espero que a distância entre nossos lábios seja apenas o feixe de luz que evidencia a quente fumaça que sai da nossa boca
e que haja luz contra o vidro e que haja escuridão entre nossos corpos e que seja. que apenas seja.

o que a gente podia ser

busco dentro de mim até mesmo fé para poder encontrar a hora certa do dia para respirar
ando tentando encontrar não só no tempo, mas no espaço, o que deixou o canto da parede vazio
encho o cinzeiro todos os dias e já começo a recitar o manual nada prático do desapego
procuro em mim o peso morto que não me deixa mais pensar e agir como antes
ele me diz que eu sei o que aconteceu, mas ainda duvido dessa verdade
questiono dentro de minha cabeça o que defez meu coração em dois e como isso se deu
ora eu era forte e inabalável
outrora eu era apenas leve e jovem
há pouco eu era apenas velha e cinza
pergunto se foi eu ou o tempo que passou por baixo da fumaça densa do meu cigarro
não entendo como perdeu-se em gavetas vazias o meu corpo, minha alma e meu espírito
nas mãos que eram as únicas a tomar meu ser eu me despi e me machuquei
eu cai nos espaços vazios dos dedos que amavam ostentar anéis de prata
fui derrubada pela língua que esqueceu-se de mim quando a neguei
bombardeada fui para os olhos de brasa quente quando esses mesmos viraram cinzas
seria uma vida toda de céu, mar, casa
eu estava acostumada para isso
acreditava que nenhuma fatalidade enfraqueceria dez dedos entrelaçados na cama
o que vejo em mim é uma grande ferida e a certeza de que só dói porque foi amor.

vinteeseisemeio

Era tão familiar quanto estranho onde nos encontramos. O calor externo que já chegava aos trinta graus não dava nem de ombros com a temperatura do meu corpo. Espasmos, dificuldade na fala, muitas passadas de mão no cabelo me evidenciavam que seria uma luta travada comigo mesmo para controlar a vontade de silenciosamente pedir um beijo.

Eu via os ossinhos do colo na camiseta decotada branca e já me via acrescentando línguas e beijos à minha vontade e à tua falta de medo. Pensava comigo se pudera existir qualquer coisa - física ou espiritual - que já me deixasse em estado de cachoeira em dias de cheia. Me via segurando meu próprio corpo, controlando até mesmo a respiração para deter qualquer distração que me deixe tirar sua blusa.

Os olhares, as pronúncias, o caos e a forma de se sentar provoca a inocente negociação com a consciência limpa. Eu te olho quase de perto e te mastigo em minhas pernas toda vez que sorrir pra mim como quem não tem horas para dormir. À sua maneira, me dá a sensação de que também não tenho hora de dormir.

Como quem morde uma fruta suculenta, mordo teus lábios apertando as tuas bochechas e te puxando para meu quadril. Chego a ver meus dedos enrolados no seu cabelo e o brilho do rastro de suor nas suas têmporas. Tremo quando meus lábios tentam te enganar que não há desejo.

ensaio

Ela voltou e suas unhas em mãos frias arrepiava minhas costelas e pernas enquanto esquentavam meu corpo. A sensação da noite fria e meu corpo em chamas evidenciava que o tempo que ficamos longe nos fez bem. Seus olhos cor de âmbar fria tocavam-me como lava quente nos sentidos, mas morriam congelada na minha pele vermelha. Meus lábios antes travadas para esse beijo abrem-se naturalmente quando a respiração do meu ofega seu nome.

amem

que haja uma escuridão tão intensa entre nós que para te ver tenha que tocar tua barriga.
que seja rápido como um sopro latino e minha boca, mas que sirva para encher meus pulmões de flores.
que haja língua nessa boca minha e que não seja a que carrego.
que nossas conversas se encham de linhas e seus sorrisos terminem no canto de minha boca.

nothing else matters

Tantos anos depois, lá está ela com palavras nos dedos, tomando café e fumando cigarros, escrevendo sobre amores que tragicamente se iniciaram. Cassia dizia que nos queria bem e neste momento, é o que importa. Ela pressiona os lábios, um no outro, para manter o tom de vinho que carrega na boa. A música que passa em sua mente pede 80km por hora e isso, na verdade, é o que importa.

Não se pode ver, como antes, como está seu coração. Seus olhos castanhos cor-de-vinho eram grandes e expressava tudo o que a boca não falava. Eu perguntava para ela onde estava o seu sorriso, como quem pergunta onde perdeu as chaves sentindo o tilintar do metal nos bolsos, como quem está com a caneta presa atrás da orelha e pergunta com o que vai desenhar.

Eu lembro que ela andava contando passos por aí, com um leve cambaleado no andar. Eu lembro que ela falava aos sete ventos sobre si para os que não conhecia e se calava diante de mim, que a via por completo. Eu lembro dela ligando para minha casa dizendo que estava conversando comigo dentro do guarda-roupa, tamanho embaraço em ouvir minha voz.

O sentimento que guardamos um para o outro é a saudade, o que para nós significa o amor mais puro que poderia existir. A saudade do que vivemos e, especialmente, a falta do que jamais encontramos.

Mas hoje ela está ali, há uns 20 metros dos meus olhos, do outro lado da rua. Ela tem um novo corte de cabelo que alargou os seus cachos deixando-os entre o ombro e o pescoço. Velhos jeans azuis que colam em suas pernas finas e o all star que fez história entre nós. Uma camisa de veludo escuro e sobrancelhas apertadas, para dar um ar de seriedade. Mas isso não importa.

Eu me questiono se nós marcassemos de nos ver, por aí, em qualquer lugar, para tomar a bebida favorita dela e falarmos de nós, jamais nos encontrariamos. Assim quer a vida, que nos coloca frente a frente em especiais ocasiões, em que o encontro é marcado pelo o que nos completa e nos une até hoje: a música. Isso é o que interessa.

Ferimos a pele de nossos corpos com coisas sobre nós, coisas sobre os dias em que crescemos junto e, principalmente, pelos dias que nem nos olhavámos entre grades e corredores. Isso é o que importa.

Ela coloca os cabelos atrás da orelha para tirar o incomodo do cachos no rosto e sorri com o canto da boca quando me olha. Isso é o que importa.

tempo

o chegar do envelhecer é tão distante quanto as pessoas que andam comigo dentro do trem. eu posso visualizar, mas não entendo e me pergunto todos os dias enquanto meu lençol pesa toneladas: por que tão depressa, relógio?

eu durmo e sonho com filetes de papel metálico e confetes caindo do céu e me levanto com o alarme que teima em dizer: grow up, kid. agora, eu preciso correr ainda mais pelo caminho que eu escolhi muito antes e tomar cuidado para não tropeçar no meio da minha ingenuidade. eu preciso torcer por mim mesma como ninguém nunca fez e, sobretudo, preciso lidar com a solidão que sempre me faz companhia nos dias que correm.

crescer nunca foi planejado. eu pensava comigo: eu estarei morta antes dos 15, facilmente. e depois, pensei que aos 17, aos 20 e agora são 21 e o relógio corre ainda mais rápido. os dias passam por mim sem deixar histórias e a rotina transformou meu café da manhã em cigarros e meu bom humor em algo esporádico.

são só 21h e eu já me sinto tão cansada, mais do que me achava às 17, mais do que imaginei que estaria aos 27.

hoje as coisas boas têm data e hora para acontecer, a surpresa já deu as costas. as coisas ruins continuam entrando pela janela da minha casa, mas por algum motivo, me falta desespero quando as vejo escorrer nos quartos que ainda são vazios.

cafeína, drops e outras felicidades, embora sempre presentes, desde sempre, parecem não exercer efeito na minha cabeça. uma vida passiva-agressiva que me mantem com saudades do que eu costumar ser, do que eu costumava ouvir.

as pessoas se surpreendem com minha idade, não importam quantos aniversários eu faça. elas sempre dizem: achei que você era mais velha. e eu digo a mim mesma: eu queria ser mais nova.

eu queria deitar meu corpo na cama e dormir e realmente meu corpo descansar e acordar com a juventude que foi predestinada pra mim. quero dormir. não quero acordar.

os olhos de ricardo

não seríamos nós se não nos encontrássemos em um cento e quarenta e sete ponto cinco. seríamos quaisquer outros se não fosse nesse lugar em que nos encontramos. e re-conhecer todas as antigas manias que tínhamos, o lamber dos lábios no silêncio e o costume de escrever em diferentes posições.
e foi gostoso, pois sinto que somos pêssego e uva, nascidos em um só jardim. às vezes, quando os dias mais quentes chegam, o vento nos balança ao ponto em que nossos galhos uma hora se entrelaçam. uma hora dessas vai, em um cento e quarenta e sete qualquer.