Coma White


"Naquela noite eu tinha bebido demais. Eu estava muito feliz naquela noite. Há muito tempo não ficava perto de quem escolheu me amar. Nem dos meus amigos. naquela noite eu tinha cantado Blues com meu melhor amigo. Ele me ensinou a tocar baixo e sorria pra mim de vez em quando. Novamente, a ocasião pedia aquela música, que por fim não foi tocada, apenas ouvida.
Saí do recinto inicial e parti para outro. Eu estava duplamente bebada. Algumas pessoas sorriam de mim, outras comigo. Alguns dançavam comigo, outros dançavam pra mim. Um beijo! Poucas palavras e óculos de grau.
Eu fiz sexo. Eu gostei do que fiz. Morguei. Meus amigos então vieram conversar comigo. Tinha uma cobra que brilhava no quarto. Eu ainda estava muito feliz naquela noite. Eles se foram depois de muitas risadas contadas. Eu caí em sono profundo.
Um sono profundo que me rendeu uma dor infinda. Quem me dera ter sido a ressaca ou o cansaço depois de um fim de semana exaustiva. Durante a noite, o Sol resolveu nascer mais tarde. Deixou solto os monstros que estavam vagando por ali. Meu corpo, jogado às tralhas era muito suculento para qualquer um desses. E realmente foi. Um deleite para outro, que me tocou sem eu ver.
Acho que devo ter sorte pra isso. Volto eu então a ter medo das sombras e à ser amante da madrugada longa de 8 horas. Estou um caco. Novamente dada aos leões. Em tão pouco tempo... Hoje estou torcendo pra que os Vinte-sete venha tomar um café comigo, talvez, condimentado com o seu açúcar. Hoje eu já não quero mais sair."

Depoimento de Lisa. 27/11/1968. Aniversário de Hendrix.

Soda Cáustica


Hoje acordei com uma vontade enorme de te trancar em um quarto. Vendar seus olhos e te deixar numa maca feita inox sem algo pra cobrir sua pele. Quis então deixar na sua cabeça uma gota de água permanente, pingando e pingando... sem parar.
Te deixaria lá por horas, sem medo de te deixar tocar o lado mais fraco do meu ser, a pena.
Depois, com uma lixa de parede, lixaria a pele do seu braço e temperaria com sal a carne viva que ficaria ali.
Te deixaria acordado e com garras nos olhos para que não perdesse cada segundo. Como Kubrick, deixaria você assistindo os mais inescrupulosos crimes.
Prepararia de antemão várias agulhas. Agulhas para eu sobrepor em suas unhas. Centenas de agulhas embaixo da sua unha. Para te alimentar, separaria a carne em putrefação com vermes de inúmeras espécies. Em seguida, colocaria pra tocar Marilyn Manson pra você dormir, pelo menos pelas próximas 15h, à 180 decibéis.
Te perfumaria com soda cáustica. Te faria sentir o que senti. Apertaria seus testículos com alicates. De cabeça pra baixo lhe prenderia em uma cadeira de ferro. Rasgaria sua boca com um serrote. Furaria seus olhos com 7 palitos de dente cada um. Você comeria suas próprias fezes. Em todos os buracos possíveis, eu colocaria vermes e insetos. Aranhas de todas as espécies. Estouraria a sua bexiga com um arame introduzido pela sua uretra. 
Hoje eu acordei pra te matar!

Limbo





Gritaram na minha porta algumas pessoas com zíperes nos olhos. Era mais um caso de abstinência que me coloca de novo de frente aos meus medos. Estava com uma neblina linda aquele dia. Nem eram 6h da manhã ainda. O dia estava nascendo com um caso que mudaria minha vida. Eu desci as escadas com a roupa que estava, esquecendo que estava frio lá fora. As pessoas choravam e falavam alto. E eu as via em câmera lenta pensando primeiro por que pareciam tão cinzas, porque estavam chorando e o que diabos elas queriam me dizer. Naquele momento, eu comecei a pensar porque meu trabalho era esse: descobrir crimes. Por que eu? Essa era a pergunta mais idiota pra ser feita naquele momento. No meio dos choros sem fim e gritos desesperados, eu disse:

- Preciso de um café.

Disse isso como quem tem uma idéia. Saí rumo à padaria. Sentei em uma das cadeiras, pedi um café, um pão e esperei. Com bondade, a moça, que devia ter uns 50 anos, me pergunta:

- Quer que esquente?

Eu ainda não conseguia responder o que ela tinha me perguntado. Estava pensando nas pessoas que deixei na porta da minha casa. O que elas queriam me dizer? Quase que lendo minha mente, ouço um casal de jovens atrás de mim que, parando de sorrir, começaram a entrar num assunto que dava a impressão de que eu participava. Eu e minha mania de participar de conversas alheias. Mesmo que calado, participo como um mero ouvinte. O assunto era comum. Mais uma morte, ou um suicídio, ou um assassinato. Alguém tinha morrido. Pra eles era irrelevante. Para mim era um modo de me afogar em conforto. Voltei para casa depois de ouvir o caso das pessoas que choravam e gritavam. O Sol estava lindo naquele dia cinza. Ouvi as pessoas uma de cada vez. Mas prestei atenção somente no que o menino tinha me dito:

- Ela estava rodando e rodando em um pé só. As pessoas riam. Ouviu-se um fogo no ar. Ela caiu. A música acabou. As pessoas choram.

Isso era a coisa mais clara pra mim. Estava óbvio. Só precisava chegar ao lugar certo e encontrar as coisas, ir atrás do corpo (se houvesse), conversar com algumas pessoas, beber um pouco de café e tudo estaria bem.

O corpo não estava mais lá. Havia sido furtado. Isso complicava as coisas. O café havia passado. O sol havia passado. As nuvens haviam passado. Onde estaria? Nos braços de um necrófilo mau?

O mais intrigante é que tudo o que havia lá era um cérebro pulsante, a projeção de um lábio repartido e um longo pergaminho.

Se o cérebro estava lá, se os lábios se projetavam lá, se os pergaminhos estavam lá, onde estava o maldito corpo?

Se o cérebro estava separado, quem garante que não o estavam os outros órgãos? Os músculos cardíacos. As entranhas. Os olhos. Os ouvidos. Os rins!

E o mais grave era a incerteza: estava viva? Estava morta? Estava no limbo? Esta vagando em busca da massa cinzenta?

Mas mantive a calma. Tudo o que precisava era investigar outros casos pendentes, inspecionar outros corpos, até que em algum deles descobrisse o dela. Beber um pouco de café. E estaria tudo bem.


Fiquei sabendo que um grande show estava acontecendo ali. E que a chuva molhava as telhas enquanto uma música de ninar fora entoada como um funeral.

Cama. Coma. Cuma?



Tirei o dia pra brincar com as palavras. Peguei elas pelas mãos e as levei no parque. Balançaram e correram. Sorriam como meninas. Tragaram-me pouco a pouco enquanto traziam-me pra realidade doce que eu tinha nas mãos. Em pequenas doses, sugaram-me sensualmente para dentro delas. Devastaram meus devaneios devassos. Me cobriram e cumpriram a nova ordem.
As vírgulas pulavam dos áquarios. Bares abertos, carros fechados, olhos atentos. Ares desertos, rastros apagados, horas imensas. Eu e você sentados em cadeiras, um de frente para o outro. Eu e você no mesmo corredor, um de frente para o outro. Eu e você, de frente para o outro.
Respiração a mil. Procuro na minha bolsa Captropil, Bronfilil... Quando me vi, já tinha se esgotado os "ils" e o ar. Apaixonei-me inocentemente pelo 180.1 lotado. Culpadamente pela ida sem vim. Pelos devaneios. Pelos renascidos de luzes. Pelos palhaços com rostos pintados. Pelos equilibristas. Pelos calculistas.
Tirei o dia pra brincar com as palavras. Tirei o dia pra me tirar do dia.

Para Devana



"Às vezes em que queimei minha guitarra foi como um sacrifício. Você sacrifica as coisas que você ama. Eu amo a minha guitarra. "


Jimi Hendrix