Chumbo

Ricardo Caldeira - flickr.com/samba_raul

Era um bar bonito de paredes sujas. Sinuca, bancos jogados no chão, silêncio pós-gritaria. Ele está no canto sem camisa, uns dez quilos mais magro e uns 20 anos mais velho. Sua barba está enorme tal como de Nietzche e seus olhos vermelhos e fundos. Suas mãos todas feridas pingam sangue, sua boca pinga baba aos poucos...
Eu entro. O lugar parece uma cena congelada de um filme de tarantino. As cores fortes como de uma polaroid. Ele parece sentir minha presença e meu cheiro mesmo que eu ainda esteja longe, olha-me por baixo e vejo toda a fúria em seus olhos. Um ódio que ficou guardado por 23 anos e que eu abri tal como Cristo abrirá a porta do inferno um dia.
Eu seguro forte o terço enquanto ele vem cambaleando em minha direção. Seu olhar de caçador me come ainda que de longe, dilacera minha carne e me consome a alma. Antes que eu possa sentir sua respiração perto de mim eu já estou cansada.
Nos vemos e parece que podemos conversar em silêncio, como nunca fizemos antes. Ele me olha no fundo de meus olhos tremendo lábios, coluna, mãos. Ergue seu corpo pra trás de olhos fechados, esticando sua coluna, estralando os ossos do pescoço... Me olha e fala em letras minusculas.
- foi chupando sua língua que tomei do seu veneno em pequenas doses, sua vagabunda! foi trepando com teu corpo que acabei vendendo meu corpo sem parcelas e com juros! foi dançando à sua voz que fui entorpecido.
foi escrevendo em teu corpo que fui seduzido. foi nas vezes que você me mandou embora que fui perdendo a sanidade. foi nas noites vazias na tua casa que ficando cativo. foi na sua cama que me viciei. foi na sua boceta que aprendi a gozar. foi olhando teu sorriso que fui esquecendo do meu. foi querendo teu melhor que acabei sendo esquecido.
Ele cai nos meus pés, ofegante, agora não mais com olhos de raposa, mas me olha como um coelho. Eu o olho de cima e meu rosto não consegue produzir nenhuma reação ou expressão nítida e certa. Ele rir de minha frieza e tenta chorar do meu descaso.

Eu fico entre cortar-lhe a garganta e salvá-lo.


"Ela é feita de cabelos e ossos e pequenos dentes

E acho que não posso falar
Ela vem como um brinquedo aleijado
Sua espinha é apenas uma corda
Eu prendo todo nosso amor nessa chapa
Prata firme como pernas de aranha
Eu nunca quis que isso se arruinasse
Mas moscas botarão seus ovos."


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