Vermelho

Ricardo Caldeira - flickr.com/samba_raul
  Hoje tirei nosso amor de caixas e de saco bolhas. Tirei tudo para olhar novamente. Retratos com caretas, eu deitada no seu colo no sofá laranja, eu guiando seu corpo no meu vazio. Tirei lembranças da vida que não conseguimos ter e esperanças de viver algo bom no futuro.
  Vi no fundo da caixa nossos rabiscos de quartas à noite. Lembrei que passávamos a noite toda desenhando, musicando tristeza e fazendo alegres poemas. Tirei filmes que nunca terminamos de assistir. Lembrei de dormirmos na sala inúmeras vezes no colchão. Lembro de você me olhar no banho e de sempre apagar a luz.
  O lençol de cetim vermelho, meu batom vermelho, tua camiseta vermelha, teu tênis vermelho... Em alguns momentos fizemos até deus duvidou que vermelho era uma cor pura. Parecia que só existia quando uníamos a tua cor na minha. 
  Entretanto, não demora muito para eu achar nossos traumas. De vermelho você secou seus olhos de lágrimas e saiu com seu violão. De vermelho você deu as costas e foi embora passar um tempo. De vermelho você compôs as que me mandam embora... Bem, o vermelho começou então à sair da casa. Nem a cachaça ou o rock poderiam evitar isso. Bebíamos muito e nem sequer cambaleávamos. Riamos muito sem alegria nenhuma sentir. Já não era igual. Já não era leve.
  As músicas no rádio eram as mesmas e eu quase decoro o tempo de cada uma para entender quando você voltaria. Você volta com perfume da noite e olhos alcoólicos tentando encontrar em mim casa. As suas costas estão mais cansadas que antes e já não me apetece mais dormir ao teu lado. O cetim desbotou, teu tênis desbotou, meu batom acabou, o sofá laranja ficou amarelo e deus agora já não olha mais para nós.
  O fim tinha chegado com cheiro de calmaria, com maré baixa. Veio sutilmente sussurrar no meu ouvido as verdades que eu preferia achar que eram mentiras.
  Mentiras... Acho que era o combustível de nosso amor. Eu mentindo os horários diversos que eu chegava, você mentindo outras bocas. Eu mentindo força e descaso. Você mentindo interesse.
  Dessa vez tudo estava de cabeça pra baixo e eu já não te mandaria embora. Dessa vez eu que ia. E eu fui. Eu fui embora e você nenhum dedo de misericórdia levantou para fazer-me ficar. Nenhum esforço para que eu não fosse. Nenhuma esperança de que daria certo. Apenas me deixou ir, como quem nunca se importa com o que perde.
  E hoje, olhando essas caixas tão bem empilhadas, com plástico bolha, ensacadas à vácuo e bem cuidadas, só tenho um pensamento: Fogo!

"Sos la razon de los volcanes trepidar
Y hasta en el encuentro de tus calles hay azar
No más, quizas, encuentres fuerza en la soledad
Aunque haya un diablo que te prive de tu libertad"


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