Quatro contra uma

  
  Ela chamou todos os seus quatro medos para uma conversa. Marcou com todos os quatro no mesmo lugar, no mesmo horário, isso contando com o grau de atraso de cada um. Ela preparou o lugar com as coisas preferidas de cada um. Levou cachaça, rock, alguns livros e filmes, violões. Separou delicadamente uma porção de músicas para que eles pudessem entrar no clima da conversa. O aroma não poderia ser diferente, todos não escapavam do forte cheiro que ela exalava, então quanto a isso, tudo estava acertado. Velas. Uma infinidade de velas. Parecia uma igreja em dias dificeis de tantas velas espalhadas, pelo chão, pelos móveis, em cima e embaixo de todas as coisas. Se eu pudesse contar, diria que tinha uma vela para cada palavra.
   Como planejado eles chegaram todos juntos. O problema de seus medos era não enxergar uns aos outros. Cada um se via ali como se fosse exclusivo, dono da cabeça dela. Como ela esperava, cada um se acomodou na sua forma de existir. Um sentado numa cadeira de madeira com detalhes que lembram muito móveis reais, com pernas cruzadas, um lord dentro de um copo pequeno. Outro, sentou-se no sofá, como um amigo de muitos anos, alguém que conhece sua casa, alguém que é parte da casa. Outro, em pé, esperava o momento certo para se sentar, tudo calculadamente pensado e planejado. O último ficou do lado de fora.
   Ela os olha e sente seu coração palpitar em dor. Sabe o que vai falar, sente o que vai falar, planejou isso e até escreveu sobre, mas nesse momento, o silêncio parece cair tão bem, como cortinas em uma janela. Ela então entona a voz, afasta os cigarros e começa a falar. Primeiramente para o que se sentou primeiro, para que também vá embora primeiro. Olha no fundo de seus olhos e vê o amigo que sempre quis ter, uma versão de si mesma.
 "Reza a lenda que você me deu um nome e que esse me tornou o que agora sou. Reza a lenda que o final não é para nós e sendo assim, esta conversa é apenas uma das mil que teremos diariamente. Reza a história que seremos sempre assim, com todos os espinhos que você viu em mim."
  Ele se levanta e a abraça ternamente com um misto de amor, paixão, desejo e cumplicidade. Transforma-se em um coelho e senta-se perto os pés dela. Um medo já tinha sido vencido, deu o braço a torcer e deixou seu desejo de lado para trazer o companheirismo à tona.
 Ela então vai ao que estava em pé, para que antes que ele se achegasse, colocasse ele de volta ao lugar que pertencia. Na minha visão, com essa ela foi mais dura, me deu um misto de sensações. Parecia que ela não o queria nunca mais, estava decidida à viver sem ele, ao mesmo tempo em que ele parecia lhe dar segurança e liberdade. Ela de pé, pegou no colo o coelho e disse em voz alta, como o tom que tinha quando brigavam:
 "Ora, meu amor, onde foi que você se perdeu? Onde nesse caminho que você me deixou? Onde estão tuas asas, meu bem? Por que agora você se esconde atrás de asas de metal, sorrisos de madeira e um coração de plástico? Erguer teu corpo em sacríficio ao nosso deus não é e nunca foi prova maior de teu amor. Vejo de longe o quão vazio está tua boca, em vista do que um dia fomos. Você veio, como diria o profeta, meu deu um pouco do seu amor, conversou comigo e disse que voltaria amanhã. O amanhã vai e volta e seus pés não se chegam mais em mim. Não há calor em ti e nem mesmo leveza. Tudo o que voava agora só se faz gélido e triste. O que houve com teu coração resfriado de tanta ventania? E quando que sua cabeça congelou?"
  Ele se tremia do alto da cabeça à planta dos pés como se estivesse possesso. Seu corpo se contorcia em ódio e seus olhos puxados estavam puro sangue e cólera. Ele fechou os punhos e contra a parede arremessou todo seu braço, abrindo um buraco entre tijolos e cimento. Depois, viu que seus dedos já não respondiam seu corpo e os tendões já tinham estourado. Ele se sentou no chão como um menino e colocou-se a chorar. Ela o olha com desprezo e dó. Um medo que ela tinha vencido, transformando-se no medo dele.
  O que estava sentado no sofá como um velho amigo, ficou olhando para ela falar coisas com ninguém (lembrando que os medos não podiam se ver), foi logo falando:
 "Quando foi que eu me perdi? Oras, quando você me deixou! Eu quis você e você foi logo marcando outra opção, me deixando só e fechado. Eu me perdi sim, mas só eu me encontrei, quando vi que você também estava só. 'Cê sabe do que eu to falando, eu sei que sabe. Eu posso ver sua cara de espanto quando eu começo a ver você por dentro. Eu ainda a quero, como quero todas as outras, como eu nunca quis ninguém. Eu não quero me acostumar com você, quero me apaixonar por você e te ver apaixonada por mim. Vou cuidar de você enquanto vou tirando sua capinha fajuta..."
  Ele continuou seu discurso por horas. Um única voz dentro do silêncio. Ela o olhava e o mantinha no mesmo lugar. Ela não o quis vencer, nem mesmo trazê-lo para perto. Ele era o medo que ela gostava de ter, uma pequena porção de realidade no seu mundo tão caótico com formas e cores em movimento tempo. Nisso tudo ele era a parte cinza e concreta do mundo abstrato dela. Ainda assim, leve, solto, livre. Ela o manteve no sofá, mas sua atenção se desviou bruscamente para o que lhe esperava lá fora.
  Estava frio e escuro. Tudo o que se podia ver eram brasas de um cigarro ilegal acesas e vermelhas, tal qual o seu cabelo. Ela deixou o coelho e o lugar, foi lá fora pra fazer seu ultimo ato, esse ainda não planejado. Suas pupilas se acostumou com o escuro e a fraca luz que resistia à distância consegui chegar a sua face gorda. A iluminação estava perfeita. Se via as curvas dos rostos e nada mais. Ela olhou nos olhos do seu medo mais cruel. Cruel por trazer a tona todas as suas lembranças mais mesquinhas e covardes. Cruel por fazê-la necessitada daquele mal. Ela o olha nos olhos e não entende ainda como atacar e muito menos como se defender. A fumaça alimenta aquele ambiente, ele não se esquiva, não ataca, não começa. Lá dentro ainda tem barulho, enquanto fora o silêncio é o cantor da noite. O tempo vai se quebrando e quando ela se ver novamente, está com os seios colados no peitoral dele. A respiração com cheiro do cigarro está na sua orelha, o calor quebrou o frio no meio. O coração dele está à mil e o dela já parou de bater. De longe se ouve uma música. (...)

Nenhum comentário:

Postar um comentário