Respeitável público!




O circo está na cidade, e a cidade toda parou pra ouvir o dono do picadeiro gritar os nomes das atrações. Havia muita gente ao redor da lona amarela-roxa que cobria uma alegria escondida atrás de uma maquiagem para espantar a tristeza. As crianças tumultuavam a entrada e a saída do circo. Sortudo era o que conseguia entrar naquele espaço e era quase um deus o que conseguia um lugar para se sentar.
As luzes estavam acesas e os vendedores gritavam ardorosamente os preços de suas almas. Pelo ambiente se encontrava todos os tipos de pessoas: Crianças que comiam de tudo e de tudo tinham, sem saber de nada. Crianças que já tinham vivido mil anos, sem comer nada por dia. Sabendo disso, entrava então o Domador, o Dono do Picadeiro à anunciar o prelúdio de uma noite que seria lembrada por todos e jamais comentada. No chão de terra batido, uma bota com estrelas faziam a poeira subir enquanto a boca com dentes que rangiam com pedaços de carne, cheiro de vinho e cor de maracujá se aproximava ao microfone:

"Reespeitável público! Boa noite. Espero que vocês estejam preparados para o melhor espetáculo da vida de vocês! Com vocês, Os Lutadores!"

De repente as luzes se apagam e um feixe de luz branca corta ao meio a platéia, de cima da aste que segurava a lona, desce um homem com cento e noventa e três centimetros. A força em pessoa. Com braços grandes e fortes. Negra pele e lábios grossos. Uma cicatriz no rosto e na mão uma garrafa de cachaça. O foco era todo pra ele. A platéia que ainda não tinha visto ele fazer nada, além de estar em cima de um poste enorme, exibindo para todos o seu físico atlético vendivel. Músculos cobriam o único músculo que ele ainda não tinha preparado para aquela noite. Seguro de sí, entendia que quando se exercitava, estava ficando invencível. Tolo homem de aparencia tão primitiva. Logo, num passe de mágica, pode-se ver entre grandes leques negros-verdes-vermelhos, uma figura ainda não compreendida. Tão frágil, como uma gueixa indefesa, de olhos redondos e grandes, de uma cor que não se sabe qual é. Com ela, vinha um silêncio arrebatador. Derrubando todas as máscaras naquela noite, ela como um passaro em pleno voo, suavemente, repousou sobre aquele nobre senhor de músculos enormes, fazendo-o trair seu gosto por si mesmo. A platéia pára para vê-la em sua dança que é tão atraente e tão singela. Movimentos que se desenrolam lentamente. Ela o tem nas mãos. Ele começa então a seguí-la, com olhos fixos, e pode-se ouvir o eco de um suspiro vindo do fundo da platéia que ver o lutador, desdobrando-se por uma gueixa candanga, sem sutaques. Ela o olha com um olhar frio por entre uma máscara transparente, ele a olha com um desejo. Uma malícia que as raposas conhecem. A forma em que ele se torna um predador olhando a garota de leques escuros, babando como se estivesse com hidrofilia, como se quisesse devorá-la. Todos veem que ela tira a paz dele. O silêncio parece gritar naquele lugar com um groove maldito de cães que uivam do lado de fora da lona. Dando voltas num espiral infinito, a baba espessa que cai da boca daquele lutador, tem cheiro de alcool. O primeiro número do Circo é o último do lutador que perdeu a noçao do que fazer diante tal beleza. Hipnotizado por ela, só a via, só a seguia. Pra ele, o foco de luz era ela. Seus músculos começam a secar. Ele nota que já está ofegante, então parte para o ataque. Do palco, você pode ver algumas mães tampando os olhos de seus filhos, pois não havia mais nenhuma luta ali, só uma presa e um predador. Ele a toma nos braços, e alguns senhores riem daquela situação, enquanto do rosto apatico e palido dela escorrem longas lágrimas, o lutador deflora tal flor que estava desabrochando naquela estação, e num golpe de sorte, ela atinge tal músculo. Entrando por entre suas costelas, sentindo pulsar em seus dedos as veias e artérias de um homem que virou uma fera diante os olhos de todos. Ela se levanta e o refletor ofusca seus olhos. Enxugando as lágrimas com a manga de sua blusa com cheiro de cigarro e álcool, ela se levanta, deixando estendido naquele lugar um corpo, que secava cada vez mais. Da boca para o resto do corpo, com seu coração pulsando fora de seu corpo. As batidas dele ecoavam por entre a platéia, que fria, assistia fervorosamente o número. Pequenos homenzinhos levam o corpo do lutador e o penduram em uma aste do Circo, volta então o Dono do Arraial:

"Senhoras e Senhores, o Mágico"

E no meio de uma névoa cinza, surge o mágico com uma cartola colorida e lábios finos e vermelhos. Sua pele era bem branca, seus olhos eram negros e ele tinha um longo cabelo negro que escondia por dentro de sua cartola. Cartas de baralho, pássaros negros, gotas azuis, trazia consigo também um violão. Renascia em todos os números, e alegrava a todos por onde passavam. Tinha sempre coisas novas para fazer, tinha sempre coisas interessantes para mostrar. Algo novo na manga. Tocava algumas músicas que ganhavam formas, e isso prendia a platéia. Ele não dizia muita coisa, mas trazia muita coisa na mala. Não precisava dizer, estava subentendido. Ele então começa a andar em circulos, e suas pernas parecem maior que seu corpo agora, ele vê atrás de longos cabelos, uma garota, ajoelhada no chão, à dormir. Ele a pega no colo e sussura no seu ouvido, algo que até o Demônio gostaria de saber do que se tratava. Ela acorda e encantada por ele, começam uma valsa com meio tom acima, ninguém sabe de onde veio a música, e nem como, mas uma chuva voraz abriu o céu daquele Circo. Enchendo de sorrisos vermelhos aquela garota e de esperança o velho mágico, que continuam girando entorno de seus corpos, valsando, valsando, valsando, enquanto podia se ouvir nascer novamente para ela JJ e JH, que deram um toque especial no ambiente. Ela só o via, molhado por uma chuva criada de lágrimas de um número anterior, condensadas em nuvens que desciam forma de uma música que não se sabe a origem. Eles dançavam sobre castelos de areia, sobre as notas de um blues rasgado e sofrido. Até que em um passo, o mágico se põe a dançar com uma outra senhorita que desceu da platéia para o ver de perto. Parecia que eles se conheciam. Ela era tão bonita em relação a outra garota que era tão blue. Ela era vívida, quente e interessante. A platéia se mantinha calada, e ao mesmo tempo, podiam se ouvir rumores por todo o lugar. Os solos de guitarra que faziam a valsa, encheram a cabeça da pobre sem par. Transbordaram e quando já não aguentou mais, um grito saiu de sua garganta como um lamúrio, como o choro de mil virgens, como um pedido de socorro de milhares de soterrados. Era seu coração que batia com tristeza. Ela viu então, a chuva parar, e do chão molhado subir novamente a água que também levara o mágico embora. A plateia começa a vaiar a pobre garota, que nenhum número ainda tinha apresentado.
Mas entrando pela contramão, em um cavalo amarelo, vem ele com um cigarro na mão, fumando com uma boca não muito bem desenhada. Cavalgou por entre os bancos, e as moças da platéia se derretiam por ele. Ele correu até ela, e a levou para passear. Deixou a luz nela, para lhe ofuscar os olhos. Um cavaleiro, um domador de feras. Não via mais ela, que seu corpo definhava, sua pele ressequia, sua alma se esvaia do corpo, sua voz não saia mais. Olhando para aqueles olhos amarelos, ela chorava e pedia socorro, num palco molhado, começava a crescer uma grande erva, que secava a vida que antes havia ali. Seu corpo estava enfraquecido, presa a ele com grilhões, ela ver refletido nas púpilias do domador de si mesmo, um palhaço a se maquiar. Um sorriso na face pintou, e com lápis preto marcou seus olhos. Descendo do cavalo, arrastando seus grilhoes, ela se aproxima dele, com um ar desesperado, a platéia em um coro só faz o suspiro de um amor que acaba de brotar ali. O sorriso do palhaço se solidifica em seus lábios, o lápis preto então começa automaticamente a descer, tornando um simples palhaço no que chamamos de Pierrot. Um romance cantado por Cazuza naquele lugar, que acabou com o Domador tomando a garota em seus braços, e a arremeçando na jaula de grandes feras que rasgaram seu vestido, manchando-o da cor de seus cabelos: vermelho. Ela novamente, se refez de cinzas, de sangue e lágrimas colocando novamente a cantar, julgando-se amada por um dos que passaram pelo picadeira. O sangue escorria por todo o palco, umedecendo a terra seca de um picadeiro nunca antes visto. Na platéia, os engravatados religiosos fechavam os olhos e debruçavam sobre seu colo a língua venenosa. Ela sendo iluminada no meio de tanta dor. O foco.
Entra então em cena alguns poetas boêmios, jogadores de cartas, músicos, artistas descidos de um disco voador. Cantando ao seu redor, estavam todos dispostos à fazê-la sorrir. Com alguns copos de cana, poucos olhares viram nascer de seus cabelos um jardim lisérgico que escorria por toda a extensão do picadeiro. A terra que outrora seca, molhada por seu sangue, começa a dar vida à rosas vermelhas, sem espinhos, de perfume agradabilíssimo.
 Cresce as rosas em direção ao Sol que se esconde embaixo da lona.
Seu vestido foi remendado por flores, logo, ela embala mais forte na música, criando ao seu redor fogo, música e fumaça. Chama então atenção de menestréis, de trovadores, cantores, boêmios e todos os que estavam ali olhando ela girar e girar. Um novo nome foi colocado em seu seio, seu coração foi trazido em uma caixinha de bronze. No seu pescoço ela carregava um emblema que chamou a atenção do que se mantinha na escuridão do espetáculo. Quieto, acompanhado apenas de uma garota. Uma linda garota, de curvas sinuosas chamou a atenção dela. E chamando-a pelos número, pelos códigos, ela se aproximou e a verdade se fez tão sólida quanto o sonho abstrato de uma vida longe daquele lamúrio. Ele então, deixou de lado a pequena L. e foi de encontro a doce menina de lábios vermelhos e olhos pintados com carvão. Ele cravou em suas pernas asas, lhe tirou a chave, a bala, a sede. Tirou ela daquele picadeiro, a levou para um lugar que produz algodão. Num infinito verão, numa infinita dança, embaixo de estrelas. Suas dores ele sanou com sua voz. Com traços finos. Com a verdade.
Caiu então a lona sobre os que lá estavam e de longe podia-se ouvir as gargalhadas envenenadas por um liquido quente. Ela já não estava só. Agora tinha começado a melhor estação do ano. O Sol já está saindo, é tempo de correr. Está na época, esta é a época. É a época.

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