- Há tempos que não a vejo. Há tempos que não ouço a sua voz. Seus cabelos caramelo moldurando o seu rosto e seus lábios cor de romã. Será que ainda faz vitrais e ouve The Doors?

Eu lembro bem de sua cintura fina e de seu quadril cubista. Olhos de cor indefinida e com o formato que as muitas águas do mar fazem com o fundo de areia. Uma voz que era possível reconhecer ao longe e uma presença que não poderia passar imperceptível.

O coração frio batia como rugidos de leões e eu via o veneno escorrer pelos cantos da boca. Um cigarro atrás do outro. Um pouco de coca, um pouco de álcool. Algumas horas na cara e um sorriso embriagado. Beber até que não houvessem mais lembranças e porquês. Xingar até que assustassem todos a ponto de estar só. Fugir e fugir como se o chão fosse caindo atrás dos seus pequenos pés. No fim da noite, arrepender-se e cansar-se pela a vida que resolveu correr mais que as pernas. Sonhar com dias amarelos. Enganar-se e convencer-se de que não lhe cabia mais.

Marcada nas costas com o desprezo, abandono, inveja e dor. Marcada na cara com a humilhação, a traição e o rancor. Uma menina com olhos de soldado e uma língua de sufocar a respiração. Mãos pequenas acostumadas a esmurrar paredes e secar as bochechas. Olhos acostumados à chorar e fingir atenção. Boca acostumada a gritar histórias e calar-se com o não.

A maldição da intolerância, a praga da cegueira. Acostumou-se na desconfiança e contava mentiras para se alegrar, como palhaço que pinta o rosto. Doava seu corpo na desculpa de não fazer diferença. Sentava nos colos, beijava bocas, deixava-se levar. "One night stand pra não morrer de amores. Uma fodida só pra eu não me machucar", pensava ela no seu antiromantismo forjado de covardia.

No chão ervas e pós seguram os seus pés para mais uma noite. Uma ou duas milhas são nada diante do tanto que ela corria. Corria como quem foge da cruz, do mundo, de medo.

Quando já cansada, mostrava um pouco de si, chorava. Novamente enganada, fazia-se vítima e praguejava o mundo. A loucura a fez linda. Os olhos borrados e o esqueleto à mostra pareciam rápidas soluções para a dor que sentia. Quando a tristeza é bela, é poética, é música...

Ela era assim. Fazia vitrais e ouvia The Doors quando a lua estava crescente e cheia. Quando minguante, o asfalto era coberto pelos cacos coloridos. Quando nova, ela ressurgia como fogo em brasa fria dando a mais bela e pura parte de sua alma.

Ainda bem que não a vejo. Ainda bem que não a vejo mais.


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