amar gado

Ela veio em sonho me trazer nas suas mãozinhas pequenas a porção de comida que tenho amargado na boca durante vinte e poucos anos. Seus cachos negros que hoje já não são, sua voz fina subindo as escadas e com passos delicados me tirou paz e sono.

E de suas pequenas mãos eu comi, como se o sabor amargo fosse pintar da cor que eu já tinha perdido. Quem sou eu pra tentar viver sem aqueles bolinhos?

Ela veio e se deitou comigo, me sufocando com seus cabelos, com suas canções de ninar, com as cartas. Veio sutilmente, tão sutilmente que  nem vi quando caí em sua teia.

E depois veio ele pra me lembrar os traumas que hoje viraram piada. Parece piada. Parece uma piada. Bastou um olhar contra luz pra ver seus olhos me seguirem e me rasgarem o corpo e as costas. Veio ele me fazer lembrar do gosto que tenho amargado no ventre por anos.

Veio impactante. Veio como um furacão.

E você...

Eu sabia, eu até me enganei um pouco, mas eu sabia. Isso não é pra mim. Não é pra quem foi criada comendo migalhas do chão, comendo o amargo. Por mais que o doce seja bom, o amargo sempre me foi servido como se serve ração para os cães de caça, como os veados se servem a boca dos leões.

E falta voz para gritar, falta lágrimas nos olhos secos, faltam sorrisos pra fingir. E eu, que me julguei forte, eu que me senti grande o bastante pra falar de quem mendiga amor, rastejo atrás desse sabor pra me sentir viva.

Ao mesmo tempo que dele eu fujo, ele parece reconhecer meu cheiro de longe e me amarra em joelho. E eles virão me perguntar o por que da frieza, o por que do silêncio... 'O que houve, meu bem?'. Jamais se lembraram... É como quando você olha pra ela e tem vontade comer. Ou se amarra em consolar outras lágrimas...

tell me why