Eu também

 

Marcamos um encontro num café, a fim de reavivarmos nossos antigos vícios, nosso antigo costume de conversar com uma xícara na mão.
Eu cheguei uma hora mais cedo, tamanha ansiedade, tamanho desejo de recontrá-la. Cheguei cedo para não ter a dúvida, não ficar pensando se ela já tinha ido embora. As horas se passaram e o que acabei pensando era que ela não viria ou não lembrara de nosso encontro. E não lembrar do nosso encontro seria o mesmo que não lembrar de mim, ou começar a ignorar nossas lembranças, nosso passado, logo, nosso futuro.
Meu coração canceriano já estava na boca e meu relógio quase marcava 20h.
Ela entrou, com uma lã cor de pele, cabelos desalinhadamente arrumados. O cheiro do ambiente cedeu lugar para seu perfume natural, agridoce, tal como cheiro de verdade. Já não tinha chave e nem amarras. Parecia um tanto mais leve que a última vez que nos vimos.
Por baixo da lã, como de costume, seu blue jeans e seu all star. Lábios vermelhos e um óculos de armação comum. Parecia mais nova que antes. Estranho como os ponteiros apressados do relógio fizeram um bem danado para ela. Outrora ameixa, agora pêssego é sua pele.
Ela senta na minha frente e a parede vermelha atrás dela parece encaixar tão bem. É incrível e inexplicável como o vermelho trata bem essa moça.
Bastou eu vê-la para que logo ouvisse nossa canção de ninar e em um segundo breve, minha mente foi levada para nossa dança de mortos, para nossa verdade, para nossa red house, para nossos caminhos tortuosos e embriagados.
Hoje ela não bebe, mas suas mãos ainda tem cheiro de vinho. Vinho, tão vermelho quanto negro agora são seus cabelos. Mais escuros, deixou sua pele mais clara e ressaltou seus olhos grandes.
Ficamos um tempo calados nos analisando e como é certo que Hendrix não era humano, ela estava ecrevendo mil contos em sua cabeça voluntariosa e lunática. Era no silêncio que escrevíamos em branco e nos líamos em silêncio.
Engraçado. Sei de todas as suas dores, mas deixei-me fechado o bastante para que sua luz não me tocasse tão intimamente. Medo de sua ação, medo de minha reação. Medo é um dos sintomas de paixão, segundo ela mesma. Ela pede o de sempre e eu a acompanho para termos algo que conversar. Inútil. Lá estava eu cheio de coisas pra dizer, mas nossos silêncios conversavam muito bem.
Eu não vi o tempo passar, as pessoas encherem e esvaziarem seus copos, o cigarro no cinzeiro apagar. Foi um segundo e uma eternidade olhando para ela.
Nesse meio tempo, ouvi músicas, dancei em algumas delas, cantei outras, dedilhei minha menina em mente, escrevi alguns livros, cai de um penhasco e deixei o mar beijar meus joelhos.
Ela sorrir com lábios secos com a cabeça inclinada. Me olha nos olhos, com olhos lacrimejados.
Ela beija minha testa e sai.
Eu em mente digo: Eu também.