Branco

Ricardo Caldeira - flickr.com/samba_raul
  Era fevereiro e a chuva já tinha dado trégua. Um ano havia se passado e nós resolvemos ainda continuar com isso. De longe era possível escutar as baterias ensaiando. As passistas passavam a noite ensaiando os braços, a porta bandeira o seu girar.

  Medi nossos braços, pernas e cinturas. Desenhei em grandes folhas nossos corpos e recortei o tecido. Uni cada mísera parte uma a outra, enquanto você me dizia não querer desfilar. Eu te olhava enquanto você se olhava no espelho, entrelaçando dedos nos cabelos, imaginando que não haveria ninguém melhor nesse mundo para subir no meu carro alegórico. Passei noites inteiras furando dedos e apurando olhos para tecer nossa fantasia.

  O enredo já não era novidade e os passos da dança nós ensaiávamos sempre que o relógio deixava. Eu passei um ano inteiro costurando no tecido verde nossas lantejoulas. Miçangas e retalhos de todos os tipos e cores. Eu pintei nossas máscaras de beijos.

  O dia do desfile se aproximava e o número de pessoas que me cumprimentavam pela festa aumentava. Todos animados e ansiosos para ver nossa fantasia de um ano se transformar em arte e dela tirar alimento. Meu coração não se segurava em meu peito e todas as noites eu sonhava com nossa entrada na avenida.

  E chegou. Chegou mais rápido do que eu esperava. Chegou em um dia claro, amarelo e gordo, farto e lindo. Não havia uma nuvem no céu e até os pássaros ensaiaram nosso samba. Nossa fantasia pronta, nosso enredo pronto, nossa escola pronta. Tudo certo e no seu lugar.

  O relógio nos chamou para a rua. Eu estava só, imaginando onde diabos você poderia estar naquele momento. A comissão de frente já entrara e nossa vez estava chegando. Eu já não conseguia falar, meus dedos quase em carne viva, e eu entrei no nosso desfile só.

  O samba parecia descompassado, as passistas tropeçavam, as baianas batiam uma nas outras e o meu carro alegórico desfilou em chamas. Não se ouviu um gemido sequer da comunidade que foi assistir. Não se ouviu um sussurro sequer.

  Mas ainda lembro que na volta para casa, vi nossas lantejoulas, miçangas, retalhos no caminho. Como uma fera atrás da presa eu segui e te encontrei nos braços de outra pessoa, como quem nunca me pertenceu, como quem nunca chamou pelo meu nome, quem nunca quis casa ou lar. Usando nossa fantasia como pano de chão, esmigalhando todos os pequenos detalhes que custou sangue para serem costurados. Você me olha sorrindo. E eu, com lágrimas, limpei os beijos de nossa máscara.




"Minha escola estava tão bonita
Era tudo o que eu queria ver
Em retalhos de cetim
Eu dormi o ano inteiro
E ela jurou desfilar pra mim"

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