Vestido Vermelho

 Velho sentado em uma poltrona grande e bem acolchoada marrom. De couro envelhecido, em um escritório de muito bom gosto. As paredes cobertas de um papel de parede com um padrão de desenhos lineares. Tudo bem organizado. Ele não olha em direção a "câmera", olha aproximadamente 39º à esquerda da mesma. Um meio perfil bem iluminado pelas janelas abertas e sem cortinas. Janelas grandes de vidros pequenos. Ele fala:

- Ela era nova, bem nova quando chegou. Por muitos anos eu atendi pacientes que tinham problemas na família, em relacionamentos, com eles mesmos. Ela não me contou nada e me disse tudo. Ela fez com que eu visse meus problemas.

 Em um corte de cena, aparece então o mesmo escritório em algum tempo atrás. O velho, um pouco menos velho. Algumas coisas em diferentes lugares. Ouve-se apenas o barulho de um pequeno relógio de mesa e quando os ponteiros marcam 07h32minh, o velho diz:

- Fale-me um pouco sobre você.

 "Câmera" nela, nas mãos dela. Unhas sem esmalte, bem cuidadas. Sem anéis. No pulso, uma fita preta de cetim. Veste-se de preto da mesma forma. Mãos sobre a barriga. Foco nas mãos. Apenas nas mãos e nos seus pés, que calçam uma sapatilha sem salto roxa de algum tecido semi-felpudo. Ela diz:

 - É normal que eu só tenha perguntas?

 Foco na caderneta de anotações do velho, em suas mãos velhas, na sua caneta dourada.

 - Sinta-se a vontade para conversar como quiser.

 Uma longa seqüência de olhos, bocas, cabelos, mãos, pés, dela. No rosto, nenhum foco. Preserve o rosto dela.

- Por que me sinto cansada? É normal se sentir cansada se não se faz muita coisa? De onde vem a falta de coragem? Seria medo a falta de coragem? Ou medo é a "falta de coragem" mais evoluída?

 A sobrancelha do velho salta por trás das lentes dos óculos.

- Não seria outra coisa que ainda não é medo? É um problema ou uma virtude que tenho? Sentir-me cansada é a certeza que vivi muito? Sentir-me cansada é a certeza de que já não vou viver tanto? E pelo o quê eu vou viver? Ainda existe em mim algo grande, forte e intenso para que me impulsione a viver?

 O velho se remexe na cadeira, olha para sua caderneta e diz em um tom profissional.

- Algo assim não é o amor? Você é muito jovem, deveria está apaixonada.

 Flashes de imagens de seus ex-amores passam rapidamente, e apertando os dedos uns contra os outros ela diz:

- Acha mesmo que o que me falta é amor? Como poderei sentir-me amada? E o que isso tem com a minha falta de coragem? E o que a falta de coragem tem com o meu cansaço?

 Ele sorrir sarcasticamente. Foco em seus lábios recessiquidos.

- Deve ser mesmo difícil amar alguém com tantas perguntas.

 Flashes de imagens de seus ex-amores dizendo que a amava.

- Você ainda acha que vale a pena acreditar que exista o amor? Mesmo que você caia mil vezes por ele? Mesmo que depois de algumas quedas o vôo não vale tanto a pena?

 Ele a olha, pela primeira vez durante o tempo que estão juntos.

- Aconteceu algo com você?

 Ela se senta repentinamente, ainda não há foco em seu rosto, apenas em seu cabelo e na sua silhueta.

- E o que aconteceu comigo justifica eu fugir do que pode acontecer? É um pecado não perdoar? E se for, qual o preço que pago pela não-confiança? Há de fato algum motivo para que eu não confie?

 Ele a olha, e ela parece delirar. Olha para um ponto fixo no centro do nada, enquanto se pergunta compulsivamente, enquanto correm pelos cabelos, braços e pernas, suas mãos levemente tencionadas.

- E qual o motivo de dizer não? Por que meu coração perde o ritmo quando perco a visão? Por que dormir não me descansa? Que sabor tem a música? Por que não sai da minha cabeça? Por que não vai embora como eles foram? Por que as coisas não passam? O que é preciso para apagar?...
-TRIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIM

 Ela é interrompida pelo despertador que diz que a consulta acabou. O riff da música se inicia neste ponto. Ela sai pelas ruas desnorteada, a "câmera" meio que foca e desfoca, aproxima e distância, vai e volta, mas ainda não foca seu rosto. Nunca se deve focar o rosto. Há flashes de um ex-amor em especifico. Flashes de dias bons, de sexo, de brigas, de discussões, de silenciosas discussões, de despedidas, de chegadas, cenas engraçadas, cenas estranhas, cena de seu ultimo adeus. Ela olha na vitrine o vestido. Mostra então ela com o vestido. O prédio então aparece, ainda com a "câmera" focada e desfocada. Ela sobre e os flashes agora são mais rápidos. Ela sobe até o terraço.
Volta para a cena inicial onde o velho está sentado. Sentado olhando para a janela. Da janela cai algo rapidamente. Mostra-a no chão.


"Vestiu-se de vermelho
Sem amigos pra contar falsas verdades
Caiu sem ter medo
Como é que os novos dias serão fáceis
Sorriu enfim
No fim saiu dali."

2 comentários:

  1. Que texto MARAVILHOSO!!!!
    Mta sensibilidade!
    Vc tem um senso artístico fora de série.
    Tenho acompanhado o blog há um tempo e td dia venho ver se tem post novo!
    Vc devia fazer cinema ou algo assim.
    Mto bom msm!

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  2. Ally! Muito obrigada pelo seu comentário. Talvez não faça cinema, mas isso com certeza virará um curta metragem.
    Muito obrigada mesmo!

    Beijos!

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