Limbo





Gritaram na minha porta algumas pessoas com zíperes nos olhos. Era mais um caso de abstinência que me coloca de novo de frente aos meus medos. Estava com uma neblina linda aquele dia. Nem eram 6h da manhã ainda. O dia estava nascendo com um caso que mudaria minha vida. Eu desci as escadas com a roupa que estava, esquecendo que estava frio lá fora. As pessoas choravam e falavam alto. E eu as via em câmera lenta pensando primeiro por que pareciam tão cinzas, porque estavam chorando e o que diabos elas queriam me dizer. Naquele momento, eu comecei a pensar porque meu trabalho era esse: descobrir crimes. Por que eu? Essa era a pergunta mais idiota pra ser feita naquele momento. No meio dos choros sem fim e gritos desesperados, eu disse:

- Preciso de um café.

Disse isso como quem tem uma idéia. Saí rumo à padaria. Sentei em uma das cadeiras, pedi um café, um pão e esperei. Com bondade, a moça, que devia ter uns 50 anos, me pergunta:

- Quer que esquente?

Eu ainda não conseguia responder o que ela tinha me perguntado. Estava pensando nas pessoas que deixei na porta da minha casa. O que elas queriam me dizer? Quase que lendo minha mente, ouço um casal de jovens atrás de mim que, parando de sorrir, começaram a entrar num assunto que dava a impressão de que eu participava. Eu e minha mania de participar de conversas alheias. Mesmo que calado, participo como um mero ouvinte. O assunto era comum. Mais uma morte, ou um suicídio, ou um assassinato. Alguém tinha morrido. Pra eles era irrelevante. Para mim era um modo de me afogar em conforto. Voltei para casa depois de ouvir o caso das pessoas que choravam e gritavam. O Sol estava lindo naquele dia cinza. Ouvi as pessoas uma de cada vez. Mas prestei atenção somente no que o menino tinha me dito:

- Ela estava rodando e rodando em um pé só. As pessoas riam. Ouviu-se um fogo no ar. Ela caiu. A música acabou. As pessoas choram.

Isso era a coisa mais clara pra mim. Estava óbvio. Só precisava chegar ao lugar certo e encontrar as coisas, ir atrás do corpo (se houvesse), conversar com algumas pessoas, beber um pouco de café e tudo estaria bem.

O corpo não estava mais lá. Havia sido furtado. Isso complicava as coisas. O café havia passado. O sol havia passado. As nuvens haviam passado. Onde estaria? Nos braços de um necrófilo mau?

O mais intrigante é que tudo o que havia lá era um cérebro pulsante, a projeção de um lábio repartido e um longo pergaminho.

Se o cérebro estava lá, se os lábios se projetavam lá, se os pergaminhos estavam lá, onde estava o maldito corpo?

Se o cérebro estava separado, quem garante que não o estavam os outros órgãos? Os músculos cardíacos. As entranhas. Os olhos. Os ouvidos. Os rins!

E o mais grave era a incerteza: estava viva? Estava morta? Estava no limbo? Esta vagando em busca da massa cinzenta?

Mas mantive a calma. Tudo o que precisava era investigar outros casos pendentes, inspecionar outros corpos, até que em algum deles descobrisse o dela. Beber um pouco de café. E estaria tudo bem.


Fiquei sabendo que um grande show estava acontecendo ali. E que a chuva molhava as telhas enquanto uma música de ninar fora entoada como um funeral.

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