Ruby

"Ruby deve ser um nome de demônio"



Dizia-me Cassandra, em meio aos goles de whisky que tomava. Eu achava engraçado como ela sabia dos meus segredos sem me ver. Dizendo sem nenhuma modéstia, eu tinha um demônio em mim. Ruby realmente deve ser um nome de demônio. Ainda vou descobrir isso.
Eu já perdi a conta de quantos anos eu tenho, assim como perdi a conta de quantos goles de álcool eu tomo por dia, e quantos cigarros eu fumo, quantos quilômetros eu já andei. Só lembro de um passado estranho, que parece não ser meu.
Cresci em um velho convento na minha cidade, chamado "Convento Santa Seda". É um nome pequeno, da mesma forma que era meu quarto naquele lugar. Acho que propositalmente pintavam as paredes à cada 6 meses  de branco, o lugar me lembrava muito alguns hospícios que via nas fotografias de livros que haviam lá, com uma legenda que me assustava muito. É um nome estranho, mas para algumas das irmãs faziam total sentido.
Era um prédio muito grande. Por fora era um azul turquesa que se aproximava muito do tom do céu às 17:40h. Seus muros eram enormes, e de fora, lembro que apenas dava pra ver a ponta de uma das torres, onde ficava o sino. O sino por sua vez, era prateado. Grande como um carro, tocava sempre às 6h, tanto da manhã, quanto da tarde.
A rotina era muito puxada, e lembro de detestar aquele lugar. Havia no dia um momento em que não podíamos conversar, nem falar, nem sussurrar murmúrios. Acho que é por isso que tenho extrema paciência de ficar calada por muito e muito tempo. Estudávamos apenas português e matemática, e tudo baseado num livro de capa vinho, sobre o qual eu não gosto de falar. Havia apenas meninas naquele lugar. Via meninas que sentavam com pernas cruzadas, mostrando apenas parte da canela. Havia uma garota em especial que muito me chamava atenção, Keira. Keira tinha olhos bem puxados, como orientais, mas pele branca como de europeus. Ela tinha mãos suaves, e seu cabelo era bem longo e negro. Suas bochechas eram naturalmente rosadas, como a imagem do Santo Cristo que tinha no Hall do prédio.Apesar de todas nós usarmos o mesmo uniforme, parecia que ela sempre estava diferente. Todos os dias um novo sabor nos lábios. Seu corpo me lembrava muito uma ampulheta, e seu nariz era bem arrebitado, assim como seus seios, que lembravam maracujá verde. Redondo. Eu a olhava e sentia por entre as pernas um fogo que fazia pequenos espirais nas coxas. Disso me lembro muito bem. O vento bagunçava o cabelo dela, que no Sol, ganhava um tom acobreado.
Duas vezes a cada 5 meses o Padre P. ia nos visitar. Abre ("Ia nos visitar" é um eufemismo. Na verdade, verdade mesmo, ele pegava o dinheiro que estava no caixa, e roçava língua com algumas das irmãs). No dia 27 de Março de um ano que não me recordo, a minha vida mudou o rumo, se é que tinha algum. Particularmente, nunca me imaginei como as irmãs superioras que tinha lá, mas também não me imaginava em outro lugar. Mas nesse dia eu soube quem eu seria no dia seguinte.
O Padre entrou nesse dia pelo portão da frente, e do final do pátio, eu pude ouvir aquele som, como se tivessem aberto as portas de um grande curral de unicórnios. Comecei a ouvir os barulhos dos trincos do portão se abrir, e podia ouvir o fungar dos quadrúpedes que empurravam o portão de ferro naquele convento. Podia ver só uma luz que era só o reflexo do Sol em algum lugar. Ciano. A luz tinha essa tonalidade. O Padre nos visitara nesse dia em uma carruagem de fogo: Impala, seu nome. Mesmo que eu e a Keira estivéssemos nuas, molhadas, despida de toda vergonha e julgo, eu ficaria tão excitada, quanto eu ficara naquele dia, por enquanto. O Padre foi em direção a Keira, com olhos vermelhos, e um cheiro que agora eu conheço. Ele friamente a olhou, e falou algo em seu ouvido, que estava encoberto pelos cabelos negros que ela tinha. Eu no fim do pátio ainda só observava, meio anestesiada pelo Impala. O sorriso do Padre era discreto, mas mesmo assim fez com que todo o som naquele lugar se calasse para dar eco ao meu pulso. Lembro de Keira se levantando e saindo do pátio, seguindo o Padre que andava com as mãos no bolso. Vi ele correr as mãos sobre os cabelos dela, enquanto pararam na frente do Grande Cristo. Eu os segui, e pude ouvir a voz de Keira se desfazendo dentro da biblioteca. Lembro de assistir a cena por uma brecha que havia na porta. Vi a mão dele com um anel que tinha um crucifixo entalhado no ouro correndo o corpo de Keira, pela cintura, colo, coxas e pescoço, enquanto um pedaço da toalha do altar prendia a língua dela.
Na manhã seguinte, meu corpo ardia em febre e eu não conseguia parar de ver a mesma cena na cabeça. Keira andava com dificuldade nesse dia. Ela me olhava sem saber que eu já sabia. Na sala de enfermagem do convento, eu via remédios por todos os lados, até que algo que muito me chamou a atenção: ópio. Uma cápsula e acordei em um hospital com tubos na boca e no nariz. Uma limpeza fizeram dentro de mim. Lembro que o nome da enfermeira era de uma planta, mas costumava a chamá-la de Joana.

"Eu vou tirar você desse lugar, eu vou levar você pra mim"

Ela me dizia. Mesmo que eu não falasse nada, algo nela via quem eu realmente era. Talvez ela tenha me visto como um desenho com traços tortos e resolvesse me consertar. Joana, devia ter uns 45 anos, mas suas mãos ainda eram novas. Ela me levou para longe dali, ainda no colo. Ensinou-me a dirigir, mostrou-me seu quarto e me deu um quarto que fez questão de pintar de amarelo.

"O Sol sempre estará guardado aqui dentro"

Lembro dela me ensinando a ser mulher, lembro dela fumando comigo no telhado. Os cabelos dela eram alaranjados, e sua pele tinha sido camuflada à mão, com pequenas sardas que ficavam no canto externo dos seus olhos verdes. Sua pele já estava castigada, e sua voz era grave. Um dia ela me mostrou uma caixa que estava no armário central, tinha um alvo na tampa, e parecia que tintas haviam caído propositalmente de forma aleatória em cima dela. Deveria ter uns 40cm³, era feita de uma madeira pesada que não tinha sido bem trabalhada. Para falar a verdade, parecia que apenas tinham cortado alguns pedaços de carvalho e feito a caixa sem nenhum acabamento. De uma coisa não se pode duvidar: era uma caixa linda. Dentro dela haviam algumas cartas, alguns recortes, algumas fotografias, e passamos a noite toda bebendo café e rindo sobre as coisas que haviam lá dentro. Alguns vinis tocavam naquela noite, e meu coração estava tranquilo, até eu ver um recorte específico, que havia aquela fera na fotografia. Era lindo. Era frio. Me deixou excitada e me matou naquele momento. Ela me disse como se eu fosse parte dela, sem nenhuma palavra. Apenas saiu e eu segui como se nada me segurasse, apesar de que as vezes eu parecia estar com uma bola e uma corrente na minha mão. Andamos um pouco pelo quarteirão quando ela me mostrou um portão verde escuro, um pouco enferrujado, um pouco degastado.

”Boa noite, Augusto¹”

Eu não entendia muito, e o frio estava deixando meus lábios roxeados, mas tudo passou quando ela acordou a fera. Marrom. Aquele som eu já tinha ouvido há um tempo, o mesmo som da carruagem de fogo que naquele dia no Convento levou nuvens de chuva para Keira. E como eu queria andar nessa carruagem e caçar o cavaleiro que outrora me deu ópio para tomar. Marrom. Com rodas devidamente colocadas no seu lugar, com aro 18, pneus negros que lembravam muito patas de um Frísio jovem. Seu motor roncava como se um leão estivesse na minha frente. Lembro de Joana me levando para a rodovia. Ligamos o som bem alto, e ao som de Deep Purple, eu vi os ponteiros passarem a marca de 120. Não havia espaço para silêncio ou medo. Eu nasci aquele dia.
Assim fazíamos todas as noites. Saíamos para andar sem temer nada. Uma vida comum, num lugar comum. Até o dia em que eu vi Padre P. na vizinhança. Com o mesmo sorriso no rosto, com os mesmos olhos vermelhos, com os anéis nas mãos, sorrindo ainda pra pequenas crianças no pátio de uma escola. Olhando pra ele eu não pude controlar meus instintos negros. Taí! Deve ser por isso que meu nome seja de demônio, pois foi com um sorriso nos lábios, que levantei a poeira de onde eu estava, sacudi as paredes dos prédios com o motor da fera Marrom, e 120 foi pouco para meus pés. Naquele dia eu os coloquei em 156! Era o meu número. E aos 156 eu coloquei sobre aquele sorriso Sagrado, as quatro rodas, as quatro patas, o meu corpo! Fiz ele sentir o mesmo calor que Keira sentia, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, AMÉM!
Depois do exorcismo que eu fiz com minhas próprias rodas, olhei para trás, e pude ver a luz do Sol refletir nos olhos de Joana, que me olhava com olhos de dor. Seu coração parecia dilacerado, seu sentia dor dela, só de olhá-la. O arrependimento foi minha companhia.


"Baby, did you forget to take your meds?"

Desse dia então, meus pés correm todas as noites procurando por algo que parece que eu perdi sem nunca ter. Um vazio enorme em meu carro, que não preenchera e nem enchera nunca, até o dia em que a vi. Ao comprar seu café, eu a vi vestida de amarelo, com cabelos volumosos, negros como o rastro da minha máquina, lábios vermelhos e pelo branca. A visão do inferno, paradisíaca. Linda. Cassandra. Deixei pra ela então meu eu em sua rua, ainda a chamei quando o Sol se preparava para entrar em cena, ela me ouviu e me atendeu prontamente. Cassandra devia ter uns 19 anos, mas bebia como se tivesse 60. Ela não era acostumada a beber e bebeu todas, eu que era acostumada, bebi água com gás. Ela sorria pra mim e tinha algo nela que me fazia sorrir.  Nem era pelas piadas, mas pareceu que eu estava cheia. Keira, Joana e Cassandra, no mesmo corpo. Assim era ela. Doce, moleca, louca, louca e louca. Deixou a segurança para se agarrar na insegurança de me ver. E como se me conhecesse correu pra mim, com seu blue jeans, sujo com tintas que não sei de onde vieram. Jim Morrison naquele dia estava vivo no seu corpo, e casou-se perfeitamente com a Janis que estava na minha mão. Foi selado com grilhões. Ela encheu e preencheu o Marrom, transformando assim numa cor que ainda não tem nome, mas que chamo assim de cor-noir. Apenas isso. E eu já cheia de mim, cheia de Cassandra, lotada e transbordante, fiquei observando seus passos. Algo que nunca senti antes, algo que me fazia querer ficar perto. Antes disso, para que eu achasse a palavra que me definia naquele momento, preferi sair no meio do escuro, impiedosamente insensível.
FIM(?)

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