Cassandra



              Dedico esse texto aos jovens que ainda não se encaixam nos padrões, ao Kid Vinil e ao meu ex-professor de Geografia, Sebastião Artur.

              Cassandra era uma menina como todas as da sua idade, com sonhos infinitos. Era filha de Sr. Astolfo e D. Mariana. Ainda era irmã mais velha de três outras meninas: Julia, Fernanda e Carla. Fernanda e Carla por sua vez, eram gêmeas. Cassandra não era como suas irmãs, que passavam horas a fio à se maquiar, pentear, vestir, perfumar, para poder chamar atenção de seus vizinhos. Elas faziam o mesmo ritual ao acordar cedo. Uma corria para o banheiro, enquanto as outras gritavam na porta:

“Sai daí!”

               Passavam corretivo para manchas na pele, base para unificar, pó para tirar oleosidade, sombra pra dar cor, lápis para delinear, delineador para marcar, rímel para alongar, dar volume, separar e marcar os cílios, blush para corar e um brilho nos lábios para chamar a atenção. 
               Colocavam suas roupas mais vistosas, arrumavam seus cabelos alinhadamente bem. Corriam por seu corpo os frascos de perfumes com cheiros doces. Enquanto isso, Cassandra ainda nem acordara. Quando ela o fazia, ia silenciosamente ao banheiro social, tomava um banho frio, escovava os dentes e ia tomar seu café, assim mesmo de toalha, enquanto as pequenas gotículas de água escorregavam pelo colo e pelas curvas que seus cabelos faziam.
               Cassandra ainda assim, era a mais bonita da família. Era uma beleza diferente das de suas irmãs. Era pura e limpa. Ao se arrumar, contentava-se em passar apenas seu batom e seu lápis de olho preto. Saía dessa forma com as bochechas marcadas pelo Sol, com a sobrancelha bem fina e negra. Um rosto comum ganhava vida com pequenos traços de mulher. Ia na padaria, comprava seu pão e voltava para casa para tomar mais café. Passava o dia inteiro à pintar paredes e camisas brancas. Convertia o branco em cores infinitas.
               Suas irmãs ainda estudavam. Cassandra já tinha terminado os estudos, e agora queria saber o que fazer da vida. Até o dia em que sua vida mudou. Cassandra se apaixonara pelo que a tiraria dali: Impala, seu nome. Na cor mogno, com rodas devidamente originais. O símbolo da década que ela mais gostava. Um V8 que poderia ter interditado as ruas de NY nos seus tempos de juventude. Foi amor à primeira vista. Cassandra que era até então pacificamente doce e calma, conheceu a loucura que ela procurava.
               O encontro foi da seguinte forma: Em uma das manhãs em que Cassandra estava fazendo o que mais gostava de fazer de manhã, dormir, ela ouviu um barulho que roncava pela janela. Segundo ela, aquele ruído que deveria ser assustador, ecoou pelo quarto em que ela dormia naquela manhã. Esse ronco só aumentava como se estivesse convidando ela para um encontro quente. Cassandra rapidamente levantou-se e foi até a janela do quarto ouvir melhor a tal melodia encantadora. Lá estava ele, com seus faróis acesos para iluminar o dia de 4h, seus bancos cor de marfim e ainda todas as maçanetas, pára-choque e soleiras cromadas, assim como as rodas. Cassandra ficou olhando para ver como ele conseguia girar, e a fumaça que subia na rua, misturando o cheiro do asfalto quente com os pneus de chamas. Ah... Cassandra jamais esqueceu-se daquela cena, tenho certeza. Aquela garota ficou na janela por uns 20 minutos, até que ele fosse definitivamente embora. Deixando pra trás um caderno que saiu do meio da névoa criada por ele. Com toda a excitação, Cassandra não se importou de sair de casa tal hora. Naquele momento, tudo o que importava era estar naquele carro e viajar pelo mundo. Saindo de casa correndo entre os pés de maracujá que tinha no seu quintal, ainda descalça, pois não lembrara de colocar seus tênis, com uma camisola de cetim azul-bebê, Cassandra correu mais que suas pernas, ouvindo ainda na sua cabeça o roncar maravilhoso. Nas palavras dela:

“Eu poderia amar um homem que roncasse como aquele carro” 

               Ela pegou o caderno nas mão tremulas como se fosse a ultima pista de um mistério, como se fosse o antídoto da monotonia que era sua vida. O caderno era de capa mole, com um casal vestido com jeans e apenas o jeans, ao lado de um árvore com poucas folhas. Sujo com café, com cheiro de cigarros baratos. O caderno caiu como uma luva na mão de Cassandra, que só abriu quando o Sol voltou ao seu posto. No caderno havia coisas sobre a expansão do universo, sobre o tempo, sobre a morte, o sexo, a cachaça, a maconha, a vida, a música e claro, sobre as viagens do dono do carro tão lindo, que Cassandra procurou. Até que chegou um momento do caderno em que a compreensão foi afetada. Estava assim:

“Ao ler, deixe aqui sua alma”

                Cassandra arregalou os olhos pintados de preto, para tais letras escritas com uma bic preta. E não sabia o que colocar. O que era a alma de Cassandra. Ela então começou a escrever tudo que vinha na cabeça dela naquele momento. E ficou mais ou menos assim:

“All around the world”

                 Tudo em volta do mundo. A alma dela era isso. Então ela entendeu a necessidade de ter aquele marrom para ela. A liberdade estava presa dentro dele, por livre arbítrio. Então, folheou mais algumas páginas que tinham segredos tão lindos, vidas passadas em linhas azuis de um caderno normal. Um aramado de tormentos e acalanto. Como se soasse como música, Cassandra e o caderno tiveram um clímax em meio a tantas palavras que já faziam voltas e voltas na cabeça dela. Então como se fosse guiada a fazer, pegou a tesoura que estava sobre a mesa, e seus cabelos cor de mel foram chão. E tudo como se fosse uma câmera lenta, mesmo que a música soasse bem rápida. Cassandra nasceu naquele dia. Inesperadamente, ao longe se ouvia aquele ruído já familiar. Intimidade estava enchendo o lugar e dando voltas na casa de Cassandra. Sr. Astolfo e D. Mariana se lembraram sempre daquele dia, em que um roncar de motor tirou sua filha de lá.
                Na porta, encostado naquela máquina, ela com seu cigarro barato no canto direito da boca.

 “E a fumaça sempre saía em espirais”

               Ela, uma ruiva de mais ou menos cento e setenta centímetros, com lindos lábios pintados de rosa, e olhos bem delineados. Com 19 anos. Seus amigos à chamavam de Ruby, era uma pena que ela não tinha amigos, mas era assim que Cassandra queria vê-la. Cabelos lisos e grandes, voavam na mesma direção da fumaça. Na mão, a voz da Janis: “Like a Ball and Chain”. Cassandra já apaixonada pelo caderno, pelo carro, num ato precipitado, saiu correndo com a colocar seu blue jeans, tênis, camisa do The Doors, segurou nas mãos a chave da sua casa e pegou os trocados que estavam sobre a cama. Correndo para Ruby, que a olhava de uma forma diferente. Abre parênteses, (Ruby olhava Cassandra de uma forma fria, que não demonstrava nada que ela sentia naquele momento. Porém, era da forma mais quente e sensual que poderia ser vista. Ruby banhada em mistérios e sedução, diga-se de passagem banhada em água ardente) Fecha.
              Cassandra já apaixonara por Ruby. E da frente da casa dela, saíram as duas ao roncar dos motores marrons.
              Depois de alguns minutos caladas. Cassandra começa a querer retroceder para sua casa, enquanto Ruby ainda dirigia o carro que já alcançava os 122km/h. Mas ela queria pelo menos ouvir a voz dela, só uma vez. Ruby só queimava seu cigarro que parecia nunca acabar e a cinza nunca caía sobe seu colo. “Eu poderia guardar aquela imagem”, dizia Cassandra pra mim. Ruby, freiou no meio da Rodovia 37 o que fez com que o Impala rodasse algumas tantas vezes antes de parar fora da pista. Cassandra ficou assustada, mas naquele momento estava passando a sua música favorita, então sentia paz.

“Baby, baby, baby... I’m gonna leave you”

               O som do carro estava acelerando de acordo com o coração de Cassandra, sua vida parecia acabar ali. Ruby, correu dos dedos entre os cabelos vermelhos e requeriu o caderno. Cassandra o deu com um pesar muito grande. Ruby abriu o caderno na página que estava marcada. E disse com tom analítico:

“All around the world... É. Tua alma é minha agora.”

               Aquilo era tão assustador e tão confortante ao mesmo tempo. Cassandra se acalmou, quando Ruby lhe ofereceu cigarro. Correram pela estrada a tarde toda, e quando a noite chegou para jantar, elas pararam num posto para abastecer. Comeram, beberam. Não conversaram muito. Se olhavam muito, mas pouco diziam. Riam das piadas dos caras que estavam no bar. Riam das quedas dos bêbados lá. Mas quando se olhavam, nada faziam. Cassandra então lembrou do batom que já tinha saído dos seus lábios. Não estava ali. Ela não era vaidosa, mas se sentia nua sem o seu batom cereja da Avon. Ruby pintou seus lábios com mel. O bar parou para ver o mel que escorria pelos lábios de Cassandra. Ruby dizia que era como o blues.
                Cassandra conta que não sabe o que aconteceu, mas sabe que na manhã seguinte, tudo estava no seu lugar. Diferentemente organizado. E para contrastar com os banhos frios de Cassandra, naquela manhã, ela foi banhada pela saliva quente de Ruby. Todo o corpo. Pelos pêlos, boca e cabelo, peitos e barriga, e pernas.
                Ruby e Cassandra não se conheciam, mas eram íntimos. O que acontece normalmente quando isso ocorre, são casais separados. Mas as duas decidiram continuar correndo estradas e correndo línguas por aí. Cassandra nunca mencionou como elas conseguiam dinheiro. Creio que vendendo o que tinham.
                Num dia, no outro lado do mundo, o Sol estava nascendo, e Cassandra já tinha tomado mais que a conta. O bar a expulsou, e Ruby já estava esperando ela num poste enferrujado, sempre com seus cigarros baratos em mãos, ou em bocas. Ruby soltou a ponta que estava manchada, arremeçou contra o vento, enquanto Cassandra cantava “Dancing in the rain” pisando em brita com os tênis nas mãos. Ruby sabia o que iria acontecer, e se desfez entre as sombras. Cassandra só queria o Impala agora. Seu desejo marrom. E o teve. A chave estava no bolso da calça que Ruby emprestara pra ela. Sem Ruby, Cassandra adormeceu no banco do motorista, quando simulava uma corrida. Ela ligou o carro na manhã seguida, e junto com o ronco do motor feroz daquela maquina 67, ouvia as risadas que dava com Ruby. Mas não se lembrava da voz dela, a não ser pela vez que leu o caderno. Cassandra continuou a percorrer estradas, ao encontro de outra Cassandra.

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