Andei tanto tempo na rua que minha pele tinha a cor do chão. Os olhos grandes foram os únicos que eram lavados todos os dias. Choro e vela antes de dormir. Um pouco de álcool pra engrossar a capa e um pouco de rispidez para tirar as fraquezas de perto.
Dormi tanto tempo só e implorando calor que meu corpo acostumou-se com a frieira. Eu tinha a forma e solidez dos prédios que me rodeavam. Um sorriso para enganar a dor e uma vida pra esquece-la.
Eu conheci tantas pessoas que esqueci de conversar com meu reflexo nos vidros dos carros estacionados perto da calçada. Bons e ruins me rodearam. Todos sumiram antes que eu estendesse a mão.
Até que segui para a casa bonita. De dia sempre amarela e à noite com cor de natal. Um grande jardim e um quintal aberto. Móveis velhos com cheiro de eucalipto e menta. Coisas novas e tecnológicas para todos os lugares.
Convidada a entrar, demorei tanto tempo para me deixar ser levada pela moradia nova que tinha música no violão. A sala colorida e luzes presas na parede eram o que eu mais gostava. Mapas e adornos de prata pendurados me hipnotizavam... Poderia passar a vida só olhando os detalhes.
A minha cor já era vermelha novamente e não era ruim dormir. Não tinha muitas pessoas, inclusive a Dona Solidão que sempre se propôs me fazer companhia nas sextas à noite. Eu era muito feliz.
Dentro da casa havia, porém, uma pequena caixa de carvalho e fechadura de ouro. Sempre aberta, convidava uma espiada, uma olhada inocente.
Papeizinhos amassados, escritos à punho, tinha cheiro de OBoticário. Fotos lindas em preto e branco, enfeitadas com recadinhos e desejos de um futuro que daria inveja ao "felizes para sempre". Cartas e músicas rascunhadas em folhas de coração. Sangue, suor, lágrimas, beijos...
Eu descobri então que essa casa pertencia a um 'nós' em que não me incluía, apesar de ser um. Eu passei algumas horas dormindo para esquecer e fazer de conta que não vi nada. Eu tentei sonhar, mas o trem parecia ser um ótima alternativa.
Eu peguei minhas poucas coisas, olhei ao redor já com saudade. Eu quero ir embora, mas me assusta tanto voltar a ter cor de chão e ter frio. Me assusta tanto a risada daquela senhora. Não tem mais tintas pra eu cantar de frente para os faróis...
Eu não sei porque ela estava lá, mas de alguma forma eu não podia tira-la dali e com ela eu não podia ficar.